Uma das lembranças mais fortes e recorrentes que tenho da minha infância em Taquara do Mundo Novo. Morávamos numa casa de pé direito muito alto, ao lado da estação ferroviária. Em certas madrugadas podia ouvir o alarido de cães na vizinhança. Cedo aprendi que não era por valentia que latiam, mas por medo.
Depois de algum tempo, explicava-se o porquê. Eles antecipavam em muito o tropel da boiada que vinha dos Campos de Cima da Serra. Desciam de São Francisco de Paula, Cambará do Sul, Jaquirana, Bom Jesus. Tropeiros a tocavam pela já então asfaltada RS-20. Uma infinidade de bois atravessava a cidade pela rua Tristão Monteiro e, ao chegar à altura de nossa casa, adentrava o paço da estação para embarque no trem. O som da tropa nos paralelepípedos reverberava como se estivesse dentro do quarto.
Os cães, perturbados, já alertavam bem antes do insólito desfile sobressaltar a noite.
O naturalista, botânico e viajante francês August de Saint Hilaire (1779-1853) esteve no Rio Grande do Sul em duas oportunidades. Isso conta já duzentos anos e ele deixou relatos e observações muito argutas sobre os nossos costumes e tradições.
Saint Hilaire impressionou-se bastante com o nosso clima, ainda hoje muito pouco civilizado. Ouviu muitas queixas sobre as então recentes secas, ficou ilhado devido às enchentes, bateu queixo com o frio de renguear cusco em Porto Alegre, sofreu calorão em São Borja. Um inesperado tufão levou o teto sobre o qual se hospedara em Restinga Seca. Pensou que ia morrer e rezou repetidamente um Salmo, quando o veleiro que viajava foi envolvido pelos ventos da Lagoa dos Patos.
Nas palavras do próprio Saint Hilaire: “Essa Capitania é certamente uma das mais ricas de todo o Brasil e uma das mais bem aquinhoadas pela Natureza”. “Os ventos, renovando constantemente o ar, fazem com que certas moléstias, tais como as febres intermitentes, sejam aqui inteiramente desconhecidas. As moléstias mais comuns são as doenças do peito e da garganta e os reumatismos, que provêm das contínuas mudanças de temperatura”.
Em relação às doenças reumáticas pode-se dizer que há controvérsias, mas ele tem razão no fato que essas condições climáticas propiciam doenças, virais, infecciosas e que podem servir de gatilhos para outras, reumáticas, autoimunes.
Nosso contemporâneo, Rualdo Menegat, gaúcho de Nova Pádua, é geólogo, doutor em Ecologia da Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele organizou o Atlas Ambiental de Porto Alegre, publicado em 1998, uma importante fonte para entender dados históricos, populacionais, geológicos e ambientais da cidade.
O professor Menegat tem contribuído muito ao explicar a situação desse desastre que vivemos nesse ano de 2024. Uma situação complexa que, segundo ele, pode ser estruturada em cinco pontos:
O aquecimento global – incontestável, apesar dos negacionistas e que, hoje, mais fortemente impressionaria a Saint Hilaire;
A situação geográfica de Porto Alegre – o Guaíba recebendo a vazão de cinco rios como um funil e escoando para outro sistema complexo, de lagunas e lagos, do Guaíba para a Lagoa dos Patos e dessa para o Atlântico, tendo que contar com a benevolência das marés e dos ventos;
A resposta à situação crítica – ecossistemas desestruturados pela supressão dos banhados e das matas e o crescimento desordenado das cidades, até a borda dos rios;
A infraestrutura que ficou mais débil, pouco planejamento na ocupação urbana e escassez de investimentos;
E, também, a (in)capacidade da Defesa Civil no preparo à população e produzir alertas respeitados.
Sobre a questão da infraestrutura, o professor afirma: “Aprendemos em 1941 que uma cidade como Porto Alegre tem que ter um sistema de proteção contra inundações pronto e funcionando. Nos últimos anos, essa estrutura não avançou. Também foram fechados sistemas de inteligência do Estado e da prefeitura; um dos exemplos disso é que o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) (da Capital) foi suprimido em uma cidade que está estabelecida em um lugar muito sensível.
Pode ser uma surpresa para alguns, mas nossa estrutura funcionaria perfeitamente se a manutenção fosse boa, se as bombas funcionassem, se não houvesse extravasamento das comportas. É um sistema antigo, que já devia ter sido renovado, mas ele deu conta enquanto estrutura. A precariedade da manutenção fez com que ele vazasse. Ele vazou, não arrebentou. Faltou um investimento adequado”.
A imprensa também tem lembrado que, em 2018 e 2023, engenheiros da prefeitura alertaram sobre deficiências em casas de bombas que poderiam contribuir para inundações em Porto Alegre. Nada se fez.
Discorre-se sobre Porto Alegre, mas vale para todo o Estado, ouvidos moucos para os alertas sobre a permissividade e alteração das leis ambientais, incapacidade de aprender com experiências tão recentes e que recorrem, potencializadas, ainda mais agressivas.
Não são poucas as vozes não escutadas. Ressoa nítida a lucidez de José Lutzemberger e de toda a história da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a nossa AGAPAN, lembrada em recente crônica da Sler.
É bem conhecido o provérbio: “Os cães ladram, mas a caravana passa”. Sua origem é incerta, mas acredita-se que remonte aos povos nômades do Oriente Médio ou aos antigos comerciantes de caravanas. Em seus trajetos, enfrentavam muitos desafios e mesmo diante dos latidos dos cães, seguiam. Tornou-se uma metáfora para encorajar as pessoas a perseverar.
Essa expressão também lembra e pode estar relacionada a um provérbio turco semelhante, “Havlayan köpek isirmaz”, que quer dizer: “O cão que ladra não morde”.
Sobre os cães do Rio Grande do Sul, Saint Hilaire escreveu: “Observo frequentemente em minhas viagens como a influência do clima é poderosa sobre os seres vivos. Na zona tórrida os cães latem menos, são tímidos e fogem à mais insignificante ameaça. Ao contrário, nesta Capitania eles latem muito e frequentemente perseguem os transeuntes com audácia e animosidade”.
Retorno à lembrança dos cães da minha infância, ladrando à “passagem da boiada”, outra expressão que também tem voltado à baila. Talvez seja a hora de despertar aos latidos que já se fazem presentes há bastante tempo. Antes que, mais do que ladrar, os cães da Capitania aprendam a morder.
Foto da Capa: Freepik
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