Tenho a convicção de que boa parte das críticas e dos rótulos ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva são fruto do preconceito, mesmo que esse preconceito esteja muito escondido lá no fundo do subconsciente de quem o destrata. É revelador que ele seja rotulado como o grande ladrão deste país forjado pelas capitanias hereditárias, vício de origem flagrante de uma monarquia cuja filosofia sempre foi a do desprezo ao trabalho. Basta ver a constrangedora longevidade da escravidão entre nós. O trabalho é tratado como algo ultrajante, e o trabalhador é desprezado, em especial se ele tiver a cor do escravizado.
Você sabia que nos anos recentes os arquitetos portugueses começaram a planejar apartamentos com dependência de empregada? Não sabia? Pois é. E sabe por quê? Porque começou a ter uma onda migratória de brasileiros, e os brasileiros amam segregar os seus serviçais.
Ora, essa é a lógica do cara que se incomoda com o compartilhamento de privilégios. É duro para essas pessoas, que nunca pegaram ônibus na vida, estar ao lado de um negro na sala de embarque do aeroporto, sentar-se perto do pobre na universidade e viajar com a doméstica pra Disney.
E quem possibilita ao negro viajar, ao pobre estudar e à doméstica realizar o sonho de visitar o Mickey? Nem mesmo os oito anos de governo em que a elite viveu momentos de grande bonança compensam o desconforto de se ver invadido pelo andar de baixo com seu cheiro de povo.
Você pode lutar para negar essa essência brasileira de uma elite literalmente vagabunda. Mas é a única explicação pra que justamente esse ex-presidente, agora presidente eleito pela terceira vez, ser definido como “o ladrão”, assim, o artigo definido pretextando exclusividade.
Recordar é viver: além das citadas capitanias hereditárias, este é o país do Ademar de Barros (“rouba, mas faz”), do Paulo Maluf, do Fernando Collor, do Aécio Neves e de outras figuras sinistras. Não, crianças, o Brasil não era uma Suécia antes de vocês nascerem. Sinto dizer que nunca foi.
Pus o ponto final no parágrafo acima e me dei conta de que não citei o presidente que comprou incríveis 51 imóveis com dinheiro vivo. Faça um exercício: imagine maços de notas que alcance o valor de 51 apês, seja em Atibaia ou onde for. Será que o seu quarto comporta tanto volume?
Mas quero abordar outro medo que o marketing político, ardilosamente, inculca nos desavisados e nos muito avisados, em especial naqueles que, como eu, integram a comunidade judaica brasileira. Trata-se da suposta má vontade de Lula com Israel, nosso sagrado e essencial lar ancestral.
Primeiro, façamos uma observação útil no desenvolvimento desse raciocínio: o marketing político tem talvez como sua principal estratégia a de provocar medo dos eleitores no candidato adversário. Isso é mais velho que o primeiro vivaldino a saquear este país tão castigado por malfeitos.
Algumas deslavadas mentiras e sorrateiras meias verdades são usadas para desconstruir a imagem do homem que assusta nossa afetada classe média justamente por suas virtudes. E lembremos: nós, judeus, somos hegemonicamente de classe média. Poucos são nababos e poucos são pobres. Por ser uma coletividade que se ajuda muito e por valorizar a leitura como essência das suas tradições, os judeus são muito de classe média. E a classe média brasileira teve enorme parcela cooptada pelo bolsonarismo, que conseguiu demonizar a figura do cara capaz de fazer o Prouni, o bolsa família, as cotas e o acesso à cultura. Ui, socorro!
Apesar dos lindos valores éticos judaicos repetidos por milênios e profundamente revolucionários com seu Deus incorpóreo, as mazelas de uma índole nacional que despreza o trabalho e os trabalhadores não ficam alheias a ninguém. E entra aí o medo que nos afeta diretamente.
Algumas falácias são sacadas do coldre e provocam estragos de difícil reversão. “Lula, quando presidente, recebeu o iraniano Ahmadinejad”, por exemplo. Veja bem: Lula não é o único chefe de Estado que recebe colegas de má reputação, em nome da diplomacia e do comércio.
No caso da recente disputa eleitoral, diga-se, o oponente, que ainda preside o nosso país, é ele próprio o obscurantista que os demais governantes evitam receber. Muito pior do que receber o Ahmadinejad por questões geopolíticas é ser ele próprio comparável ao Ahmadinejad.
Ah, e temos Israel. Este colunista, orgulhosamente judeu e sionista, já conversou diretamente com Lula sobre esse assunto. E ouviu exatamente as mesmas palavras que levaram o presidente eleito a ser aplaudido em pé pelo Knesset (o parlamento israelense) lotado quando era presidente: as de que a defesa do Estado Palestino não se contrapõe à defesa do Estado judeu, desse país tão essencial para todos os judeus.
Leia AQUI coluna em que este autor discorre sobre toda sua afeição ao sionismo, o que lhe confere autoridade para abordar esse assunto.
Na eleição de domingo passado, com seu catártico resultado, havia o contraponto do candidato da extrema direita, que aparenta nutrir amor sincero por Israel. São muito duvidosos esse amor e, principalmente, a sua sinceridade. Na verdade, o uso da bandeira de Israel e de outros símbolos judaicos atendem a alguns discursos messiânicos neopentecostais segundo os quais a elevação (aliá) judaica a Eretz Israel será seguida da volta de Jesus. E, ocorrendo isso, ai dos judeus se não se converterem.
Ah, você talvez diga que “Lula deu dinheiro pro Hamas”. Não, pessoal. O que o governo brasileiro fez, quando Lula presidia o país, foi participar da arrecadação internacional de subsídios para a reconstrução de Gaza. Portanto, nem foi presente de Lula nem foi para alimentar o terror.
Aqui, então, a diferença entre uma relação oportunista e uma relação verdadeira com Israel! O cara defende o Estado Palestino (e os palestinos gostam dele por isso)? Ora, qual o problema? Eu também defendo o Estado Palestino (ao lado e em paz com Israel, evidentemente)! O problema é quando o cara rejeita a legitimidade de Israel (antissemitismo). Lula sempre foi defensor de dois Estados e nunca contestou o ideal sionista do (essencial) Estado judeu.
Logo, relaxe quanto a esse assunto. Haverá antissionistas no governo? Sim, e até sei quais são as laranjas podres. A esquerda é tomada por figuras do tipo, e enfrentá-las ou esclarecê-las é uma missão. Já a direita tem seus delirantes refratários às minorias, que fazem apito pra cachorro capaz de provocar uivos de neonazistas. Este colunista escreve ainda sob o choque de ver bolsonaristas de braço estendido em típica saudação nazista, episódio ocorrido aqui perto, em São Miguel do Oeste (SC).
A eleição passou, e a transição já se iniciou. Entenda que o objetivo deste texto é o de clarear fatos e esvaziar tolices. E sigamos, de cara limpa, porque são muitos os cacos a serem juntados depois do perverso furacão.
Nem sou petista (sou convictamente apartidário), nem tenho vocação para ser chapa branca. Sou movido pelo papo reto e pela cara limpa. E tenho profundo apreço pela tarefa de desconstruir narrativas goebbelianas.
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Frases soltas:
Ser contra o racismo não pode ser “discussão política”.
Ser contra a homofobia não pode ser “discussão política”.
Ser contra o fascismo não pode ser “discussão política”.
Ser a favor da ciência não pode ser “discussão política”.
A favor dos livros e não das armas? Não pode ser “discussão política”.
A favor da vacinação? Não pode ser “discussão política”.
A favor da solidariedade? Não pode ser “discussão política”.
A favor da democracia? Não pode ser “discussão política”.
Em resumo, algumas coisas são indiscutíveis.
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Shabat shalom!