Autor de livros que desvendam a mente de um extremista, de um terrorista, de um homem-bomba, de obras que vasculham lugares quase inacessíveis, o psiquiatra e psicanalista Nelson Asnis usou uma expressão que já instiga pelo título: A síndrome do espectro antissemita – e a barbárie de 7 de outubro de 2023.
Essencial! O que estamos vendo desde o pogrom devastador do dia 7 de outubro, quando as vítimas, antes mesmo de reagirem, são rotuladas de vilãs, é o ressurgimento do velho antissemitismo disfarçado no conceito atual de antissionismo, que é a negação do judeu à sua autodeterminação e ao seu lar ancestral depois de séculos em uma diáspora violentíssima.
O que intriga a todos os que têm alguma sensibilidade com o tema é que esse tipo de sentimento avesso à etnia mais perseguida e mais resiliente da história humana (comparável apenas aos africanos escravizados) parecia ter sido enterrado num aterro sanitário definitivo. Só que não. Nunca foi.
Descendentes de sobreviventes dos pogroms e da Shoá (Holocausto) veem atônitos o avanço do tsunami em mar que parecia calmo. E todo esse sinistro revival é testemunhado em tempo real. É muito assustador! Os agressores são tomados por um caldo de cultura antigo e tentam justificá-lo sob novas roupagens que atendem às atuais circunstâncias, a ponto de o judeu passar de “raça” (antes da refundação de Israel na antiga Judeia) a um grupo humano que, segundo seus detratores, mesmo tendo rigorosamente todos os elementos que definem uma etnia, nem povo é, porque Israel precisa ser deslegitimado.
Repito: é assustador! MUITO assustador!
O antissionista busca infinitas brechas para justificar o seu ódio ancestral até agora majoritariamente adormecido. O conceito “lugar de fala”, tão respeitado em outras minorias, ao judeu é negado, a ponto de os outros quererem definir o que é antissemitismo, quando isso não é “opinião”, é informação.
Sim, crianças, negar ao judeu a sua autodeterminação no lar ancestral após tantos e tão cruéis séculos de incompreensões, perseguições e violências, é puro antissemitismo, e isso, com as exceções de praxe, é confirmado por algo como 90% dos judeus. Logo, só acatem e respeitem o lugar de fala, em vez de tentar apagá-lo, assim como tentam apagar o lugar físico (Israel).
Enfim.
Nelson conta, conforme o texto de lançamento do livro, que “o antissemitismo existe há muito tempo, e esta expressão de ódio, direcionada especificamente a um grupo étnico – os judeus – pode ser definida pela denominação de ‘Síndrome do Espectro Antissemita (SEA)’ – a mesma que intitula o seu novo livro, publicado pela editora O Viajante”. E mais: “Valendo-se de diferentes intelectuais e pensadores, de Sartre a Freud, de Hannah Arendt a Amós Oz, assim como de suas próprias viagens a locais como Polônia, Ucrânia e Irã, o autor traça um grande painel do antissemitismo, em especial no último século e meio.”
“Sem pretensões de que se esgote o tema ao longo da História, transitamos pelo lamentável Caso Dreyfus, pela cúmplice omissão do Vaticano perante o nazismo, por infelizes cartuns antissemitas em jornais árabes e até pelos nefastos shows do ex-Pink Floyd Roger Waters, além de várias outras expressões que compõem a Síndrome do Espectro Antissemita (SEA)”, diz.
O livro já estava em plena edição quando, no dia 7 de outubro de 2023, ocorreu o maior ato de antissemitismo desde o Holocausto: o massacre em Israel perpetrado pelo grupo terrorista Hamas, que, com requintes de crueldade, assassinou mais de 1,2 mil civis, entre jovens que se divertiam numa festa rave e famílias que viviam em kibutzim, e ainda sequestrou mais de 200 pessoas, incluindo crianças, mulheres e idosos.
“Lamentavelmente, novos e seguidos episódios de antissemitismo seguem ocorrendo, o que torna este livro uma obra fundamental, necessária e urgente. Um convite à reflexão e, sobretudo, à conscientização, para que possamos combater esta odiosa forma de preconceito”, diz o texto de apresentação.
Realmente! Essencial!
E o nome “síndrome” se enquadra perfeitamente ao assunto do qual estamos tratando. Síndrome é uma condição clínica caracterizada por sintomas ou sinais, de origens diversas.
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No jornalismo, é comum a reportagem ser composta de texto e grafismos que tentam fazer o conteúdo ser mais palatável, elucidativo e didático. Segue aqui um “ponto a ponto”, para quem não entende e para quem resiste a entender por pura má vontade, algo usual entre os preconceituosos, por definição:
1) Sionismo é o movimento de autodeterminação do povo judeu no seu lar ancestral, lar de origem desse grupo étnico-religioso vítima de inúmeras e violentíssimas perseguições. Um lar na região que era chamada de Palestina e nunca foi uma nação, mas que, antes do exílio forçado judaico pelos governantes romanos, era uma nação, a Judeia, como havia a Bretanha, a Germânia e a Galia, aquela defendida pelo Asterix (que hoje é a França).
2) Ser “antissionista” não é criticar o governo de Israel e eventuais excessos no seu direito à autodefesa (que, evidentemente, é legítimo), mas sim ser contra o país existir e se defender. Essa distinção é essencial pra compreensão dos fatos.
3) Feito o esclarecimento acima, digo que, sim, ser “antissionista” é ser antissemita. E essa definição deve vir do lugar de fala judaico. Logo, o simples debate a respeito desse assunto é antissemitismo, porque ignora o lugar de fala do judeu, o invisibiliza e o apaga ao lhe tirar todos os lugares, do físico ao de fala, num acinte que não se vê pra outras minorias.
Talvez agora esteja claro.
Se não está, é porque você é um antissemita incorrigível.
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O senhor das moscas
Um livraço, um clássico, completa 70 anos: O senhor das moscas.
E como é atual! Como William Golding foi genial!
O livro trata do naufrágio de adolescentes em uma ilha no Pacífico e está repleto de simbolismos. Mas, na sua essência, mostra a luta entre o convívio civilizado, cimentado em regras sociais, e o barbarismo sem regras, violento, devastador.
Na disputa entre um grupo (minoritário) que quer respeitar as regras de convívio e outro (majoritário) que as despreza, objetos como os óculos, cujas lentes acendem o fogo ao serem postos sob o sol (são os óculos de um menino gorduchinho e inteligente, que pede o cumprimento de regras e se torna vítima de desprezo dos caçadores), aparecem como símbolos da lucidez, em detrimento da selvageria dos meninos que só querem caçar e abrem mão de serem resgatados pelos adultos.
E o senhor das moscas? É a cabeça de um javali, que serve de totem do grupo violento e, em estado de putrefação, está cercado de moscas. A figura remete a um deus, o Belzebu, que surge sendo adorado pelos filisteus e depois se torna conhecido, no cristianismo, como uma das formas do demônio.
Ah, esses clássicos…
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Shabat shalom
Foto da Capa: Pixabay