Porto Alegre é um gosto adquirido. Mais: Porto Alegre é uma insistência, uma obsessão até pouco saudável, daria pra dizer, é um amor triste continuamente não retribuído, assim como a volúvel Odette desdenha o desesperado Swann no primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido (aguardem para breve uma apreciação deste seu escrevinhador sobre a nova e hypada edição a Companhia das Letras). E de todas essas caprichosas decepções, cada dia uma nova, diversa, para cada novo habitante desta pequena grande cidade, sei de uma que me incomoda bastante, embora talvez seja apenas uma questão minha – de modo até desproporcional, tornando, é possível, um tanto fútil o caráter do meu desagrado. Uma das coisas que mais me perturbam, mais me ofendem, mais me magoam nesta cidade calorenta, mas cada vez menos calorosa, é uma placa.
E não falo aqui nem de uma placa colocada como marco de homenagem polêmica ou duvidosa, como aquela vez em que Porto Alegre mudou o nome da Avenida Castelo Branco (o que eu não achei uma ideia ruim) para Avenida da Legalidade e da Democracia (o que eu achei uma péssima ideia) – e depois a Justiça retornou tudo ao que era dantes no quartel dos delirantes (ops, de Abrantes). Não, a minha indignação se dirige a uma placa de rua, dessas indicativas de direção e localização, a mais banal das sinalizações urbanas, mais especificamente aquelas que começaram a ser penduradas há exatos 10 anos em toda parte preparando a cidade para a Copa do Mundo no Brasil. De um dia para o outro, lá estavam aquelas novas peças com um novo padrão – e em avenidas e ruas, em rótulas e entroncamentos, em vias principais e secundárias: placas grandes, retangulares e suspensas indicando a direção do “Centro Histórico” de Porto Alegre.
Desfaçatez
Já naquela época isso me parecia de uma desfaçatez ímpar, e isso que as coisas ainda não haviam descambado para o atual momento em que o prefeito da cidade age ativamente como porta-voz de empreiteiras e construtoras, qualquer casa com menos de 20 anos corre o risco de vir abaixo para dar lugar a mais alguma caixa reta de uma estética que só não é duvidosa porque é praticamente inexistente e a cidade, nas palavras de alguém que li recentemente está “virada numa imobiliária” (curiosamente, eu podia jurar que a pessoa que eu vi dizendo isso votou no atual prefeito, então não sei se ela quis dizer o que eu acho que disse ou se é uma pessoa de ingenuidade comovente…).
Quando mudei para Porto Alegre, nos inacreditavelmente longínquos anos 1990, o Centro era só Centro, e já naquela época a cidade havia derrubado muito do que valia a pena conservar e o enchido o lugar de torres feias de concreto e vidro, quando não de monstrengos gigantes simplesmente abandonados em petição de miséria. A relação perversa e algo abusiva da administração pública com o Centro da cidade é tão marcante que a mais emblemática “ruína histórica” do “Centro Histórico” de Porto Alegre é o famigerado “Esqueletão”, monstruosidade que apodrece e se deteriora ao ar livre desde 1959 no coração da cidade – ao mesmo tempo um dos desastres urbanísticos mais constrangedores de uma Capital no Brasil e uma perfeita representação da mentalidade que faz a cidade tentar resetar a si mesma sem sucesso a cada geração, deixando atrás de si apenas os escombros das malfadadas tentativas.
Condenado
O Esqueletão está virtualmente “condenado” desde 2018, quando o Ministério Público, preocupado com as conclusões de um laudo técnico que o declarou em risco crítico de desabamento. Para ser justo, quando ainda estava em campanha, o atual prefeito imobiliário se referiu ao Esqueletão nominalmente como um dos imóveis que “seria ajeitado ou iria ao chão”. Em sua fala, ainda em campanha, o prefeito citava os proprietários do prédio (para mim é uma grande surpresa que alguém ainda seja dono dele e não tenha sido corrido para fora de Porto Alegre a chineladas, por exemplo). Mas não pareceu considerar, como raramente considera, aliás, que, abandonado como esteja e caindo aos pedaços, há pessoas naquele prédio. Moradores, donos de lojas, pessoas que ocuparam o que a sanha da iniciativa predatória deixou inacabado e bem ou mal fizeram a vida acontecer em volta. Aparentemente, essas pessoas estão sendo removidas com auxílio da Secretaria de Habitação, e eu adoraria que algum repórter empregado em algum veículo com a estrutura para isso acompanhasse esse assunto mais de perto, para além das notas feitas com base em declarações da própria prefeitura que eu andei lendo por aí. Mas aí confesso que, ao fazer isso, estou torcendo pelo jornalismo, o que anda mais difícil e menos recompensador do que torcer pelo Inter.
Me dei conta, agora que parei para pensar nisso, que essa tem sido a marca do urbanismo “realizador” de Porto Alegre nas últimas três gestões: declara que algo está vazio ou abandonado (quando, na verdade, está apenas ocupado por gente pobre ou fora do radar do grande Capital), manda umas patrolas para arrancar árvores ou derrubar casas e constrói algo impregnado de breguice pós-moderna em que “barzinhos” que cobram um rim por uma lata de refri se instalam para que a burguesia da cidade possa “redescobrir” o lugar (quando ele nunca esteve perdido, sendo o exemplo mais flagrante a orla e seus projetos de “remodelação” repletos de zonas cinzentas – que, curiosamente, se proliferam quanto menos há “zonas de sombra” no lugar, dado que derrubar árvore é uma espécie de tara do poder municipal sobre a qual escreverei na semana que vem). A Redenção corre o risco de ser a vítima mais recente desse ardil.
E aí, com tudo isso, estão lá as placas para dizer que ali fica o “Centro Histórico”, quando a única coisa que pode referendar o caráter “histórico” do centro é o registro documental, em arquivos, papéis, fotografias e livros, mas não mais os lugares, que já não existem. O próprio Sérgio da Costa Franco, mestre falecido em outubro do ano passado, em seu clássico Guia Histórico de Porto Alegre, já lamentava a destruição periódica da cidade, de um arraial português até certa altura, depois uma cidade com aspirações francesas, mais tarde com uma forte influência germânica e finalmente esse arremedo de metrópole impessoal ao estilo dos EUA. Um exemplo que Costa Franco lamentava com veemência era a demolição da primeira matriz da cidade, uma autêntica igrejinha açoriana, derrubada para dar lugar à bonita, mas mais impessoal, catedral semigótica que está lá na Praça.
Inspiração
Porto Alegre é um lugar em que a história pega fogo, prédios antigos são demolidos, os prédios novos que se erguem não colaboram em nada com a estética da cidade – porque são pensados apenas para o bolso de suas construtoras -, e ainda assim tem a cara de pau de subir essa placa e chamar de Histórico o que não pode mais nem ser chamado de ruína.
Se vocês andam lendo este site com a atenção que eu ando, vai ver que este não foi o único texto recente sobre urbanismo. No meu caso, não foi pura coincidência, mas também não foi nada combinado. Apenas, inspirado pelas leituras dos textos de meu colega colunista Flávio Kiefer, com mais propriedade do que eu para falar desses assuntos, que decidi também comentar essa minha implicância gratuita com o fato de o marketing ser usado para substituir o que devia ter sido a cultura da cidade, a de um real apego por sua riqueza arquitetônica e pela sua história, e não pela riqueza dos acionistas de construtoras que parecem querer comprar a cidade toda.
Millôr Fernandes escreveu (está no Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos, da L&PM, mas não me lembro a página exata) que o Rio era a prova de que cidades também se suicidam. Porto Alegre vai pelo mesmo caminho – e pior, com o atraso de sempre
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NEM TE CONTO – Nº 1
Ah, sim, aproveito este finalzinho da coluna para começar o que, pretendo, seja uma série de petiscos paralelos aos meus textos de toda quinta-feira. Não sei vocês, mas eu gosto de contos. São curtos, podem ser lidos de um único fôlego, provocando aquela “unidade de efeito” de que Poe fala em “A Filosofia da Composição”.
As pessoas costumam recomendar livros de contos, mas acho que isso nunca dá certo, porque livros de contos nasceram para ser irregulares. Há gemas brilhando no meio do restolho de algumas coisas menos inspiradas em que um leitor pode tropeçar e sair para nunca mais. Então, não, livros de contos não são coisa que eu recomendaria a não ser em casos muito raros.
Então pensei em, daqui para diante, voltar a falar mais de literatura nestas colunas com uma série de postagens que vai durar até quando eu quiser em que eu indico UM CONTO toda quinta-feira. Só um conto, curto, breve, para ser lido de uma vez e discordar de mim ou concordar comigo no menor tempo possível. Serão também indicações sucintas (esta primeira está mais longa porque estou explicando como o bagulho funciona). Não vou me estender numa longa resenha de um conto, até porque o que faz alguém gostar de uma história curta muitas vezes tem a ver com uma atmosfera ou uma circunstância. Vou dizer só um pouco mais do que “este é legal, vão lá e leiam”. Então declaro inaugurada a seção “NEM TE CONTO”:
“PEÇAS”, de Alice Munro
Do livro “Fugitiva”
(Duas edições recentes em português, uma pela Companhia das Letras, em 2003, com tradução de Sérgio Flaksman, e outra pela Biblioteca Azul, de 2014, com tradução de Pedro Sette-Câmara)
Todo mundo cita o conto-título desta coletânea, que de fato é muito bom, mas a primeira vez que li este livro, a história que me fisgou foi esta “Peças”. Robin vive uma vida de merda atada a uma irmã com problemas físicos que a submete a jogos psicológicos de ressentimento angustiante. Seu momento de liberdade está em ir, nas férias de verão, ao teatro em Stratford, a 50 quilômetros de sua cidade, assistir a peças de Shakespeare. Numa dessas ocasiões, ela conhece um rapaz. Com essa sinopse, podia ser uma história de amor dessas grotescas de banca de jornal, mas a canadense Munro aprecia flagrar um momento em que uma vida no limite cruza a linha do tolerável. E faz tudo isso com uma prosa elegante que vai adicionando cada novo acontecimento com sutileza e engenho.