Fui professor por mais de 40 anos de História e Filosofia da Educação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e tive a oportunidade de ler os chamados “clássicos” da matéria (naquela acepção de Ítalo Calvino mesmo), de Platão a Paulo Freire, passando por gente como Santo Agostinho, Quintiliano, Descartes, Comenius, Kant, Rousseau, Pestalozzi…, e todos, praticamente todos, depositaram na educação, no ato de educar (que é diferente de instruir ou treinar ou capacitar ou habilitar) uma esperança e uma crença extremamente positivas no destino do Homem, o que podemos, resumidamente, chamar de sua “Humanização”. Para explicar essa ideia, permitam-me retomar uma passagem de Rousseau (Emílio).
Rousseau se pergunta quando um gato – sim, o felino! – completa a sua “gatoeidade”? Oito meses? Quando já caça seu rato e sobrevive sem ajuda? E depois disso será sempre o mesmo “gato”, até o fim… Mas, continua, e quando é que um HOMEM completa a sua HUMANIDADE? E responde: “Nunca!” Fica aqui definido, tanto para ele quanto para Kant, o princípio de nossa “perfectibilidade”: somos seres incompletos e que precisamos fazer algo por nós mesmos para alcançar níveis mais elevados de humanidade que, na verdade, nunca serão alcançados; até porque, no dia em que alcançássemos nossa mais perfeita e completa condição, não precisaríamos também de Liberdade para fazer e construir “projetos” (do latim “pro jectum”, lançar-se para frente!). “Morreremos todos no meio de um projeto”, dizia Cioran.
No entanto, não vem nem da filosofia nem da história das ideias a melhor reflexão que conheço a respeito da ideia de educação: vem de uma singela crônica de jornal!
Nos anos 90, o semiólogo e escritor Umberto Eco (1932-2016) mantinha um coluna, aos sábados, num jornal de Bolonha chamada “La bustina di Minerva”. Numa dessas crônicas ele conta a seguinte estória: ele era jovem aluno de Filosofia da Universidade de Torino e morava na Casa do Estudante, que fechava irrecorrivelmente suas portas à meia noite, todos os dias. Ocorre que Eco, um apaixonado por teatro, ia toda noite assistir a uma peça na cidade ou nos arredores (em geral no Teatro Carignano) e era obrigado a deixar a sala de espetáculos quinze minutos antes do final para, correndo, pegar a Casa do Estudante ainda aberta (dormir ao relento no inverno europeu pode ser fatal!). Ele assistira a praticamente todas as grandes obras da dramaturgia ocidental, menos os quinze minutos finais! Dúvidas atrozes corroeram-lhe o espírito durante anos: “Édipo finalmente descobriu quem era o assassino que ele procurava?”; “Lear aceitou finalmente que era Cordélia quem tinha razão?”; “Alfflin se curou graças à penicilina?”; “Galileu conseguiu mandar seus escritos para Amsterdã ?”; “Os oito personagens encontraram o Autor?” Até o dia em que ele se encontrou com seu amigo, Paolo Fabri, jornalista, e contou essa estória. Fabri comentou que, “nesse caso Umberto, eu sofro da angústia inversa, porque nessa mesma época eu era bilheteiro de teatro – pra ganhar um trocado – e era obrigado a esperar o último espectador retardatário para fechar aquela portinhola e entrar na sala. E lá estava Ricardo III pedindo por um cavalo em pleno combate; Prometeu acorrentado sem nenhuma razão aparente”. Eco continua a crônica dizendo: “Então Paolo, teremos uma ótima aposentadoria: toda tarde nós nos sentamos nesse banco de praça e eu conto pra você o início e você me conta o fim de cada peça!”. E arremata: “Será que nós seremos felizes? Será que a vida, de fato, imita a Arte? Essa vida em que nós entramos nela quando as cartas já foram lançadas e sairemos dela sem saber o que vai acontecer com os outros?”
Penso que, mais do que qualquer obra de Pedagogia que eu tenha lido ao longo dos anos, essa crônica expressa, para mim, todo o dilema do ato de educar. Meu nascimento foi o ato menos “democrático” de minha vida: meus pais não me consultaram para saber se eu queria vir ao mundo nas condições e tempo em que vim! E cheguei num mundo já estruturado e no qual levo muito tempo e preciso de longa ajuda para compreendê-lo e saber viver nele. E como pai ou como professor, eu nunca saberei se meus filhos ou alunos serão aquilo que eu gostaria que eles fossem, se eles alcançarão o mais alto grau possível de suas “humanidades”! Até porque, a utopia pedagógica que eu lhes proponho de qualquer forma será “velha” e “ultrapassada” quando eles crescerem e assumirem sua “emancipação” (do latim “soltar a mão”).
Hannah Arendt achava que a educação era “aquele ponto em que decidimos se amamos o mundo suficientemente para permitir sua continuidade”: nós apenas começamos algo, introduzimos algo no Mundo, mas nunca saberemos como terminará. Eis uma daquelas “profissões impossíveis” de que falava Freud: nunca veremos o seu “fim”!
Onde é que eu fui me meter!
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Foto da Capa: Freepik AI