Às vezes, uma efeméride é a desculpa perfeita pra um colunista falar de personagens sobre os quais adoraria escrever. É o caso da heroína Raquel Liberman, cujos 90 anos de falecimento ocorreram no dia 7 de abril. Nascida em 10 de julho, Raquel estava quase completando 35 anos quando morreu. No próximo dia 10 de julho, ela faria 125 anos.
É curioso que Raquel ostente esse sobrenome, cuja tradução diz muito sobre a sua luta. Ela é uma das mulheres mais corajosas na busca pela dignidade de gênero e pela liberdade.
Nascida em Berdichev (que já foi cidade polonesa e hoje é ucraniana), a judia Raquel Liberman, mãe de dois filhos, veio para a Argentina fugindo desesperadamente dos pogroms, mas foi enganada como muitas outras jovens judias que viam num casamento por procuração a sua salvação. Chegando aqui, foi capturada e levada para um bordel. Sua história tem lacunas ainda hoje não preenchidas (o marido era ciente da trampa?), mas basicamente foi isso.
Ou seja, Raquel foi uma das famosas “polacas”, prostitutas judias enganadas que, angustiadas para fugir do inferno na Europa Oriental, chegavam ao que supunham ser o paraíso sul-americano e eram sequestradas e forçadas a se tornar profissionais do sexo. Um crime horrendo, que ocorreu na Argentina (cuja prostituição era uma atividade legalizada até 1936, e isso facilitava a atividade) e também no Brasil – se você não conhece, procure na internet e ouça o lindo samba “Judia rara”, composto por Moreira da Silva!
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Abro aqui parênteses para comentar meu assombro quando vejo supostos “humanistas” não entenderem a importância para os judeus do seu único e pequeno país no mundo. Se Israel existisse naquela época, muitas atrocidades da diáspora não teriam se criado, e as polacas não passariam pelo inferno que viveram, uma vez que teriam quem as protegesse dos pogroms. São exasperantes as dezenas de malabarismos narrativos para perseguirem os integrantes de um povo tradicionalmente rejeitado onde quer que estivessem.
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Voltando ao foco da coluna, falemos sobre Raquel Liberman, cujo personagem eu já vi romanceado, cheio de liberdades poéticas, numa telenovela argentina de anos atrás. A atriz que a interpretava era Eugenia “La China” Suárez, uma das mulheres mais exuberantemente lindas que já vi na vida, numa belíssima interpretação, pelo carisma, pelo sotaque, por tudo.
A heroína Raquel teve a valentia de denunciar seus sequestradores e gigolôs, desfazendo a famosa rede de prostitutas judias “Zwi Migdal”. A máfia era comandada por bandidos judeus. Mas cabe sempre a ressalva: os que a combateram e levaram à punição também eram judeus, integrantes da comunidade judaica portenha, e, de mais a mais, sempre é bom lembrar que a ética judaica é linda e pioneiramente humanista, mas não necessariamente todos os judeus a seguem. A própria Torá (os cinco primeiros livros do chamado “Antigo Testamento”) põe propositalmente falhas em todos os protagonistas bíblicos, porque a perfeição só existe na figura incorpórea chamada Deus. Sacou?
É óbvio que a simplificação desse episódio alimentou muito antissemitismo por aí.
Sempre que surge o pretexto, o pretexto é usado. E às vezes nem precisa surgir.
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Raquel Liberman hoje dá nome a diversos prêmios de direitos humanos na Argentina.
Merece ser sempre lembrada e reverenciada. É uma heroína.
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Shabat shalom!
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Foto da Capa: Raquel Liberman / Reprodução