Um dos livros de divulgação científica mais bem sucedidos do ponto de vista comercial no século XX foi The Worldly Philosophers, de Robert Heilbroner, uma história do pensamento econômico (título, aliás, que a obra ganhou no Brasil) concentrada na vida e nas épocas de grandes economistas ao longo da história dessa ciência relativamente recente. A palavra “worldly” do título foi traduzida na edição brasileira da editora Abril Cultural (que depois se tornaria Nova Cultural) como “profano”, o que gera uma razoável confusão por remeter, de modo automático, à oposição com “sagrado”, e não com “idealismo”, “metafísica” ou até mesmo “físico” numa escala de grandezas e não das miudezas mundanas que formariam o tema dessa ciência bastante pragmática, no entendimento de Heilbroner:
“Todos eram fascinados pelo mundo ao seu redor, por sua complexidade e sua aparente desordem, pela crueldade que tantas vezes se mascara de hipocrisia e pelo sucesso do qual muitos nem sequer se davam conta. Todos eram absorvidos pelo comportamento de seu companheiro homem, primeiro pelo modo que ele criava a riqueza, depois pelo modo que ele passava por cima do vizinho a fim de se apoderar do seu quinhão. Eis por que eles podem ser chamados de filósofos profanos, pois buscavam encerrar em um esquema de filosofia a mais profana das atividades humanas — a luta pela riqueza”.
Publicado em 1952, o livro é escrito em uma linguagem acessível e sua abordagem metodológica claramente deve algo aos modelos de Will Durant, com seu A História da Filosofia (1926) e Bertrand Russell, com seu História da Filosofia Ocidental (1945). É, portanto, também vulnerável às mesmas críticas feitas a esses dois livros anteriores, principalmente o grau de arbitrariedade conservadora com que escolhe seus marcos (Adam Smith, Malthus, Ricardo, Marx, Keynes, Schumpeter) e, principalmente, suas omissões.
Presente perpétuo
Outra questão possível com o livro é como, economista ele próprio, Heilbroner claramente enche a bola de seu próprio campo com a mesma boa e velha lenda que todo economista regurgita desde que essa ciência se tornou a língua franca do “mercado”: a economia é a ciência que desvendou um processo natural inexorável subterrâneo aos sistemas de trocas entre indivíduos e comunidades, que é muitas vezes definido como “a mão invisível do mercado”, usando uma expressão fundadora do já mencionado Adam Smith.
Os economistas têm sido bastante bem-sucedidos em emplacar no discurso público a ideia de que seria “melhor pra todo mundo” que esse sistema fosse livre de regularizações para que possa chegar a um “equilíbrio natural” mais eficiente que qualquer outro meio de produzir riqueza. É uma postura nascida não apenas do surgimento do capitalismo como ainda encarna perfeitamente o espírito iluminista: o mundo não é caótico, apenas incompreendido, não há desordem, apenas regras em funcionamento que o pensamento humano ainda não conhece, e tudo será melhor no momento em que esse pensamento for desvendado. Como diz o próprio Heilbroner em seu livro:
“Em certo sentido, o maravilhoso mundo de Adam Smith é testemunho da crença do século dezoito no inevitável triunfo do racionalismo e da ordem sobre a arbitrariedade e o caos. Não tente fazer o bem, diz Smith. Deixe o bem emergir como um resultado do egoísmo.”
Curiosamente, um dos pontos fortes desse livro, a forma pioneira como abraça a interseccionalidade, cruzando a história econômica com as ciências sociais, hoje parece bastante em desuso em um pensamento econômico de hegemônica inspiração neoliberal (sim, eles não se chamam assim, eu sei, mas são o que são, no fim das contas). Chama a atenção o quanto a atual onda das variadas vertentes do pensamento econômico de inspiração liberal se afasta do classicismo em direção a um tipo de entendimento que parece mais empenhado em apagar a história e cristalizar o pensamento econômico num presente perpétuo sempre incorreto (dado que nenhuma regulação existente é bem-vinda) e em uma visão utópica de um futuro que ainda está distante simplesmente porque os economistas “certos” não são ouvidos, em detrimento de “aventuras estatizantes” e de “gastança irresponsável do Estado” (você já ouviu esse discurso ou variações dele recentemente, lembre-se).
Pragmatismo x Abstração
Essa é uma visão que busca moralizar o entendimento popular da economia – não à toa, a grande imprensa, como a cordeira obediente que sempre é, e seu setor especialmente subserviente, o jornalismo econômico, usam palavras com conotações “positivas” como “responsabilidade fiscal” e “austeridade” para aquilo que apoiam, automaticamente criando para qualquer visão diversa a pecha contrária de “irresponsável” ou “desequilibrado” ou “permissivo”. Claro, esse entendimento moral nunca é levado às últimas consequências quando o objeto dos gastos são os pobres, ou quando determinados investimentos podem se provar danosos para o ambiente a ponto de comprometer gerações futuras – como vimos nos casos envolvendo desastres de todo tipo, do envenenamento de jazidas pelo garimpo ao desmatamento florestal do agro, passando, claro, pelos emblemáticos desastres da mineração mineira.
Outro elemento curioso de se olhar para um livro como o Heilborn 70 anos depois é sua insistência numa visão da economia ligada ao pragmatismo, muito por causa dos efeitos diretos e indiretos que as decisões e formulações econômicas têm na vida cotidiana de populações inteiras. É nessa abordagem que um livro como esse parece incrivelmente datado. Porque se houve alguma coisa que aprendemos com as últimas décadas é que os efeitos da economia nos indivíduos são muito concretos, mas que qualquer formulação econômica não é feita com eles em mente. A boa administração econômica pode até ser defendida como fundamental a um regime democrático, já que é ela (ou sua ausência) que muitas vezes elege e derruba governos. Mas a Economia em si, como ciência, é notoriamente um campo de conhecimento que não lida com a escala humana.
Há alguns anos, Paul Krugman deu uma declaração comparando a economia com uma criação ficcional de Isaac Asimov, a ciência da Psico-História, desenvolvida na série de livros Fundação. Na trama, a psico-história é o centro de um plano de reconstrução da civilização galáctica humana após a queda de um império, dado que é uma ciência equipada como nenhuma outra para prever com um grande grau de exatidão a dinâmica futura de sociedades (ao mesmo tempo, é uma ciência, diz Asimov nos livros, totalmente inútil para prever o comportamento de indivíduos isolados). Krugman dizia em sua frase (que, obviamente, foi usada como “blurb” do livro em seu relançamento) que a psico-história era o “a economia é o mais próximo que se pode chegar” dessa ciência fictícia maravilhosa e empolgante.
Não creio que a exatidão da frase de Krugman resida na forma como os especialistas dessa ciência salvam o mundo compreendendo suas dinâmicas sociais, mas no fato de que, pensada para grandes quadros históricos abarcando até milhares de anos, a psico-história não leva em consideração indivíduos isolados – bem como a economia como ciência. Heilbroner postulava uma presença epidérmica da economia na vida cotidiana, mas o que está presente nela são seus resultados, muitas vezes elaborados sem levar em conta seus efeitos devastadores. Como tudo hoje é uma batalha de relações públicas no teatro da opinião popular, falta a muitos economistas a coragem de admitir abertamente essa verdade cristalina: a economia é uma ciência de sistemas para os quais algumas vidas são dispensáveis no panorama geral.
Videntes
Claro, Paulo Guedes e parte de sua equipe estavam nesse grupo de lunáticos muito confortáveis em admitir que, em nome da liberdade de mercado e da balança fiscal, algumas pessoas a menos não seria má ideia. Mas de modo geral o discurso de um economista sempre parece esconder um pouco esse desprezo velado pelo elemento humano, mirando em conceitos abstratos e metáforas como “a mão invisível” ou a “força natural” de que falava o hoje hypado Hayek. A “verdade inconveniente” dessa percepção só escapa raramente, em momentos de distração. A questão é que, como essas abstrações são disfarçadas com uma linguagem matemática sofisticada inacessível à maioria, parece haver um divórcio incontornável entre o que um economista defende na teoria, sua aplicação na prática e até mesmo o quanto a reputação de alguém assim pode ou não ser danificada pelo tanto de bobagem que diz ou faz.
O jornalismo econômico brasileiro adora, por algum motivo, ouvir Delfim Neto como especialista toda vez que uma medida econômica é anunciada. Como czar da economia na ditadura, era famosa sua frase de que “era preciso fazer crescer o bolo para depois dividi-lo”, com que ele justificava suas políticas de controle de inflação e aceleração do crescimento que escolhiam um lado na boa e velha luta de classes. Sua política reduziu juros, deu incentivo à indústria e congelou salários, mas os números frios eram, em tese, positivos – claro, ajudava o fato de essa mágica ser realizada num governo autoritário que torturava gente nos porões e mantinha controle rigoroso da informação. Outra frase de Delfim Neto que não é tão lembrada como deveria foi proferida ao aprovar o AI-5, em 1968, e comentar que o fato de que o regime havia permitido “contestações de todo o tipo” havia embretado medidas que possibilitariam o desenvolvimento econômico. Esse é um dos especialistas da grande imprensa econômica.
Armínio Fraga é outro, só pra dar mais um exemplo. Um dos apóstolos da responsabilidade fiscal preocupados com os sinais de um futuro governo que possa tirar a grana de programas assistenciais do teto de gastos. Bastante curioso ao lembrarmos que ele foi um dos artífices da paridade dólar/real que garantiu a reeleição de FHC a um custo altíssimo – principalmente, como sempre, para a população mais pobre.
Até os programas de futebol já se ligaram que chamar ex-técnicos como analistas de jogo é um tiro no pé, porque o torcedor tem memória dos sucessos e fracassos de um profissional desses e a credibilidade do pitaco “especializado” poderia entrar em queda livre mais rápido que um cronista esportivo partindo para a defesa do futebol belga. Na economia, como as políticas são complexas e alicerçadas no abstrato, qualquer um, aparentemente, pode vender a ideia de que sabe o que fazer, desde que você não vá atrás daquilo que ele realmente fez quando teve a chance.
Talvez a comparação com técnicos aposentados seja injusta, no fim das contas. Se há uma profissão constantemente consultada pela mídia que pode sim ser equiparada – inclusive na sua implacável independência de qualquer resultado verificável, seriam as videntes de fim de ano.
Mais textos de Carlos André Moreira: Clique aqui.