As histórias do jornalismo e do teatro judaicos despertaram muita curiosidade na semana passada. Então vamos atiçar ainda mais essa simpatia à arte, à história e ao judaísmo. Tem vários textos contando as origens judaicas dos super-heróis. Stan Lee, o pseudônimo de Stanley Martin Lieber, nunca fez questão de ser discreto, assim como vários outros autores que usaram temas judaicos. O Super Homem é recheado de simbolismos propositalmente judaicos, assim como os x-men.
São belíssimas as histórias. E você sabia que até mesmo os “piratas do caribe”, celebrados pela sequência de filmes estrelada por Johnny Depp (Jack Sparrow), protagonizam aventuras épicas às quais os judeus não são alheios?
Bem, mas foquemos inicialmente no Brasil como o destino dessa gente despossuída, que singrou mares desesperadamente atrás de um lar em que ao menos tivesse paz, condições de prosperar e criar seus filhos. Claro, o ideal dos mundos era Yerushalaim (Jerusalem) – era para lá que sempre, por milênios, dirigiam-se as rezas e os lamentos judaicos. Mas, enfim, “shalom” (paz) era o que se queria. E a perseverança seria traduzida à perfeição em meados do século 20, quando o genial Viktor Frankl sobreviveu aos campos de extermínio nazistas e escreveu o livro que mostra como a vida sempre faz sentido, em nome do passado (de quem nos trouxe até aqui e não está mais conosco), do presente (nós e nossos projetos) e do futuro (a nossa tão amada descendência).
A comunidade judaica organizada atual é considerada a partir de 1904, quando chegaram as primeiras levas fugindo dos pogroms para a Philippson e Quatro Irmãos. Mas, antes, vieram muitos outros. É notório o protagonismo de Gaspar da Gama, tradutor de Pedro Álvares Cabral, que embarcou na caravela fugindo da inquisição.
No Brasil, até a proclamação da independência, em 1822, o catolicismo era a religião oficial, e não havia liberdade para a prática de outras fés. Os cristãos-novos enfrentavam restrições socioeconômicas, na vida cotidiana e na ocupação de cargos e profissões, ainda que, desde a descoberta, vários judeus fossem discretos protagonistas – são notórios os exemplos de Gaspar da Gama (nascido em 1444 na Polônia e poliglota), Fernão de Noronha e Diogo Fernandes, todos foragidos da inquisição espanhola e portuguesa.
A ocupação holandesa, no Nordeste, foi um hiato, um breve alívio: permitiu a instalação de uma fugazmente livre e aceita comunidade judaica. A Nova Holanda, governada de 1637 a 1644 por Maurício de Nassau, exibia tolerância fora dos padrões. Há registros, de entre os anos 1630 e 1654, daquela que foi a primeira comunidade judaica organizada do Brasil – e que, diante da volta dos portugueses e da necessária fuga, ajudou a erigir Nova York, a “capital” do mundo ocidental, a metrópole da civilização, a “Grande Maçã” da fertilidade originária e até do pecado, onde as diferenças convivem sem pruridos.
Fuga em alto mar
A maioria das quase 150 famílias judaicas – ou 400 pessoas – que partiram às pressas de Pernambuco seguia para a Holanda. Umas aportaram na América e fundaram comunidades na região do Caribe – Jamaica, Curaçau, Martinica e Barbados. Outras foram para o Reino Unido. E houve as 23 que chegaram a Nova Amsterdã no mesmo, 1654, e fundaram a exuberante, pulsante, poderosa e icônica comunidade judaica nova-iorquina, essencial na pujança da grande metrópole cosmopolita.
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Pois então, voltando a leitura ao princípio dessa peculiar experiência judaica sob administração holandesa em pleno nordeste brasileiro, foi no tranquilo ano de 1637 que judeus foragidos da inquisição fundaram a histórica sinagoga e centro comunitário Kahal Kadosh Zur Israel (Santa Comunidade Rochedo de Israel), em Recife. Trata-se da primeira sinagoga das Américas, vejam só! Depois dela, no Brasil, houve um momento de atração judaica também para Belém, na década de 1820, por conta do ciclo econômico da borracha e de suas oportunidades. Tivemos, então, a sinagoga Shaar Hashamain (A Porta do Céu), em 1824 (não por acaso, apenas dois anos após a independência em relação a Portugal), e um cemitério judaico em 1842. Por essa época, o Rio de Janeiro também teve sua primeira instituição judaica, a União Shel Guemilut Hassadim, estabelecida por judeus marroquinos, assim como a sinagoga Shaar Hashamain. Alguma organização se ensaiava. Em 28 de janeiro de 1873, foi fundada a União Israelita do Brasil.
A pirataria
Bem, e os curiosíssimos “piratas do caribe”? Há considerável literatura a respeito. Entre outros livros, “Jewish Pirates of the Caribbean” (Edward Kritzler), “The Jewish Nation in the Caribbean” (Mordechai Arbell), “Los Piratas Judíos de Jamaica” (Moshe Vainroj), “Piratas Judeus no Caribe” (Rabino Nissan Bem Avraham) e “Inquisição e nazismo” (Simão Arão Pecher). “Jewish Pirates of the Caribbean”, inclusive, é frequentemente indicado aos amigos por Jorge Mautner – dramaturgo, escritor e ícone da Música Popular Brasileira (MPB), que nasceu no Brasil um mês depois de seus pais terem chegado em fuga do Holocausto.
Mautner resume o livro contando que trata de “como judeus portugueses e espanhóis dominaram os mares caribenhos e garantiram a democratização e a segurança judaica da América”.
A história é a seguinte: com o decreto de 1492 que impunha a Inquisição na Espanha e cujo teor seria repetido por Portugal em 1636, judeus sefaradim tiveram de abandonar tudo na Península Ibérica e, muitos deles perseverando heroicamente em sua fé judaica, rumaram para Holanda, Marrocos e, também, para o Caribe. A situação era dramática: uns foram assassinados no Santo Ofício, e quem sobreviveu teve confiscados todos os bens. Ou seja, seguiam adiante só com a roupa do corpo. Não por acaso, Cristóvão Colombo descobriu a América justamente em 1492 (12 de outubro) – e há relatos de que levava uma Torá em suas embarcações. Era uma multidão de judeus paupérrimos e desrespeitados em sua identidade, buscando salvação em alto-mar e, claro, com sentimento de vingança e reparação. Muitos deles tiveram acolhida nas naus de piratas ingleses e holandeses que acossavam justamente embarcações espanholas e portuguesas recheadas de saques perpetrados de populações indígenas das Américas – assim como tiraram bens da população judaica. Muitos desses judeus ficaram no Caribe, tornaram-se corsários ao lado dos seus capitães salvadores, rumaram para países como o Brasil e até ajudaram a fundar Nova York. Não é de estranhar que esses homens despossuídos, perseverantes e orgulhosos de sua identidade judaica, chefiaram navios como o “Rainha Esther”, o “Profeta Samuel”, o “Jerusalém” e o “Escudo de Abraham”. E hoje podemos ver, em cemitérios de Barbados, Curaçao e Jamaica, instigantes lápides com letreiros em hebraico e símbolos piratas. É lá que jazem os irmãos Abraão e Moisés Cohen Enriques, Samuel Pallache, o corsário Siran, David Abravanel (conhecido como o “Capitão Davis”), o casal Yacoob e Deborah Mashaj, Yakov Koriel e Jean Lafitte.
Essa é só parte da nossa incrível história, de discriminação, perseguição, incompreensão e muita resistência a tudo isso, pela preservação da dignidade, da identidade e da honra.
A eterna resiliência
Trata-se de uma etnia perseverante em sua cultura e resiliente na busca pela sobrevivência. Jean Paul Sartre, em meio à resistência contra o nazismo na França, dizia que os judeus precisam se apropriar da sua narrativa (como defendia também o sábio Hillel), porque a alternativa a isso seria outros o fazerem – e, claro, fazê-lo mal. A ignorância só pode ser combatida pelas luzes da sabedoria, e, ao “Povo do Livro”, é dado o domínio do verbo como uma adaga do bem, sua grande “arma”.
Brechas do preconceito
O antissemitismo sempre busca brechas para se perpetuar. É de uma perversidade sorrateira! Às vezes, delirante. Judeu é “raça”, depois deixa de ser raça e vira só uma religião – se o contexto cruel exigir. E por aí vai. Chegam a se esquecer de que “raça”, assim como outros conceitos, é só convenção do próprio racista (e acaba existindo sociologicamente, mas nunca biologicamente). Nunca existiram “raças” entre humanos, nem por cor de pele, nem por origem! O judeu entra 100% na definição literal do que é etnia (origem, idioma, cultura, história, hábitos socioculturais comportamentos e/ou religião comuns). Ao ser vítima de preconceito, é, logo, de racismo que falamos.
Desde sempre os textos judaicos são em hebraico! Milhares de anos! Todas as liturgias são em hebraico, a Torá é em hebraico. E o iídiche é uma adaptação natural do refugiado à diáspora, com palavras no idioma local e no hebraico (a diferença do hebraico semita para o iídiche às vezes está só numa vogal). Quando os judeus foram expulsos da Judeia pelos romanos (entre os anos 70 e 130 da Era Comum), a dispersão por outras regiões foi natural e obrigatória. Na Germânia, a adaptação era uma imposição, com a adoção de dialeto próprio (o iídiche) e de costumes que se integraram ao judaísmo, algo previsível nesse tipo de situação. Tem antissemitas que sustentam perversamente (numa tentativa impressionantemente absurda de apagamento do caráter semita dos judeus) que determinado grupo local, os kazaris, teria se convertido ao judaísmo no remotíssimo século 8 (ora, 13 séculos atrás, sete séculos antes de o Brasil existir como país!). Além de ser em si algo irrelevante, isso seria improvável, porque dificilmente pessoas iriam querer se converter a uma minoria perseguida em plena idade média – e também porque o judaísmo sempre rejeitou o proselitismo. A origem provável dessa falácia é que na época os judeus precisavam se mostrar iguais para evitar a segregação. Objetivamente, de qualquer forma, as pesquisas genéticas comprovam a origem askenazi no Oriente Médio, havendo ou não conversões ou miscigenações, o que pouco importaria.
Enfim, o que os antissemitas atuais, muitos deles travestidos de “antissionistas”, têm buscado é, depois das tentativas de eliminação étnica, fazer capciosamente o apagamento da própria identidade (do judeu) pela semântica. E, ao tentar dissociar “antissionismo” (ser contra a existência de Israel) de antissemitismo, afrontam o que a esmagadora maioria dos judeus pensa e, dessa forma, tenta tirar-lhes até o lugar de fala.
Como são perversos!
Pelos livros da filósofa negra Djamila Ribeiro, o conceito de “lugar de fala” foi consolidado e popularizado no Brasil. É genial em sua lucidez singela! Diz que os integrantes de uma minoria precisam ter seu próprio lugar de fala. Coincide com a visão de Sartre na França ocupada pelo nazismo a respeito de o judeu assumir sua narrativa, não deixando que ela seja (mal) feita pelos outros. Quando um “antissionista” que rejeita a legitimidade de Israel (não confunda isso com eventuais críticas a ações do governo israelense, que, evidentemente, podem ser compreensíveis e até razoáveis) diz não estar sendo antissemita, essa concepção não deve ser dele. Deve ser judaica! E fica claro que a negação à existência do pequeno Estado judeu no local de onde nossos ancestrais saíram para uma diáspora sofrida (inquisição, progroms, shoá) é ignorar o povo e seu sofrimento.
Histórias de viagens
O psicanalista e escritor Abrão Slavutzky comenta: “A história do povo judeu é também a história de suas viagens através do mundo, pois, ao longo de 2 mil anos, foi sendo expulso de todas as partes devido à falta de uma terra própria e por não ser cristão. O maior poeta judeu da Espanha, na idade de ouro, escreveu: ‘O meu coração está no Oriente (Jerusalém), o meu corpo no Extremo Ocidente (Espanha)’. Eis em uma frase a multiplicidade dos espaços judaicos, pois ilustra muito bem a imagem do coração para um lado, corpo para outro e no meio o vazio. Em todo novo lugar os judeus ficavam com suas almas nuas, uma expressão da Cabala. As almas saem do corpo e esperam outro que virá com o tempo, quando a integração na terra for alcançada. Mas ao longo dos séculos, sempre que os judeus imaginavam ter encontrado um novo corpo em outra terra, vinha a perseguição, a expulsão e a morte.”
Levando conhecimento na bagagem
O Prêmio Nobel é uma boa forma de medição do quanto uma cultura pode ser forjada pelas belezas da própria tradição e, por outro lado, pelas cruéis vicissitudes do preconceito e das perseguições, que tendem a ser, paradoxalmente, elementos aglutinadores. A título ilustrativo, vale uma breve reflexão sobre a lista dos agraciados desde a criação do Prêmio Nobel, em 1901. Entre 20% e 25% dos vencedores são judeus, e a grande maioria deles atua nas áreas científicas. Perceba: os judeus são apenas algo entre irrisórios 0,2% e 0,3% do total da população mundial! A que podemos atribuir tamanha assimetria? Um dos motivos certamente é a importância que os judeus sempre atribuíram ao estudo e à erudição. O nível de reflexão e análise necessárias da Torá e do Talmud (que em hebraico significa “estudo”) é algo internalizado. Gerações dedicadas ao estudo dos textos judaicos resultaram, quando se incorporavam à comunidade ampla (a partir do Iluminismo) em pessoas exitosas nos estudos laicos. A mente inquisitiva leva a descobertas e ao conhecimento. O judaísmo permite e estimula os homens a investigarem, descobrirem, inventarem e curarem. E foi a ética judaica que inculcou no pensamento ocidental a noção dos direitos humanos, a máxima do “não matarás”, de que todos os homens são iguais perante a lei (divina e humana) e que a vida e a dignidade dos seres humanos são sagradas.
Somado à perseverança de manter intactas sua cultura e sua fé essencialmente monoteísta (o Deus incorpóreo é revolucionário e sempre incômodo) e ancorada numa ética de valores sólidos, esse legado todo, sendo preservado ainda que contra o poder e as crenças dominantes nem sempre receptivas ao diferente, traz problemas que transitam entre negação do alheio, desprezo por ele, raiva, preconceitos, segregações, inveja e narrativas que levam ardilosamente à incompreensão. Vale repetir: algo permanentemente revolucionário.
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As frases do sábio Hillel, no início da Era Comum, sempre devem ser lembradas, porque são a essência. “O que é odioso para ti, não faça a teu próximo: esta é toda a Lei; o resto é mero comentário” e “Se não eu por mim, quem por mim? Se eu for só por mim, quem sou eu? Se não for agora, quando?”
Grito contra o antissemitismo
Permito-me reproduzir o curto texto que elaborei em 11 de abril de 2015, no jornal Zero Hora (onde eu trabalhava), diante do avanço da incompreensão histórica e das consequentes, renitentes e milenares manifestações antissemitas sob variadas roupagens. O texto é direto e procura resumir o sentimento de inquietação no espaço delimitado pelos caracteres possíveis na seção do jornal destinada a articulistas. Eis alguns trechos:
“Eu estava no jantar de Pessach, na sinagoga (Centro Israelita), quando soube: um antropólogo escrevera que o ‘batuque’ é perseguido por sacrificar animais, enquanto a ‘poderosa comunidade judaica’ (sic) não sofre tal recriminação. Pessach é a Páscoa judaica. Fala em travessia e vida. Seu repasto é o mesmo compartilhado por Jesus e seus apóstolos na Santa Ceia. Primeiro: não se matam animais nas sinagogas, salvo algum ritual ortodoxo tido hoje como bizarro (dentro do judaísmo). Segundo: referir-se a judeus como poderosos remete a uma forma rasteira de antissemitismo (…). É difícil para um judeu abordar assunto tão doído, mas o artigo do antropólogo e outros episódios recentes, como seminário numa universidade sobre o ‘apartheid de Israel’, levaram-me a um basta (…). Falar de antissemitismo me é especialmente ardido, como tocar numa ferida de cicatrização precária. Então, vamos por tópicos: 1) Dá para definir brevemente o judaísmo, como num tuíte? O sábio Hillel digitaria: “Não faças ao outro o que não queres que façam a ti”. No mais, há “70 formas” de interpretar a Torá, e deve-se ter a fé monoteísta, no Deus incorpóreo. 2) Judeus são “ricos” e “poderosos”? Perseguidos por manter sua cultura em detrimento da fé dominante, a esse povo de intensa coesão étnica era proibido, na Idade Média, trabalhar a terra. Restavam-lhe atividades como a médica e a bancária, vedadas aos cristãos. Pronto: bruxos e usurários! Quando a nobreza se endividou, a solução foi matar o credor, recorrendo à Inquisição, uma das tantas perseguições antissemitas. 3) Têm presença forte na mídia e no entretenimento? Muitos aderiram a essas atividades em razão de uma afeição atávica pelo conhecimento (“um tesouro que ninguém te tira”, dizia minha avó materna sobrevivente do Holocausto, deixando a Polônia no exato ano em que estourou a guerra) e por serem as que lhes restaram, como no item anterior. 4) Há apartheid em Israel? Os negros, na África do Sul, não tinham extremistas querendo aniquilar uma nação, e os árabes participam da democracia israelense (…). Os judeus reivindicam o direito de defesa (do seu pequeno Estado, sua essencial referência territorial). 5) Alguma conclusão? Os judeus foram expulsos de Israel pelos romanos entre os anos 70 e 130 da Era Comum. Passaram por perseguições como a inquisição e os pogroms, que culminaram no absurdo do Holocausto. Na diáspora, nunca deixaram de rezar voltados para Jerusalém, sua cidade sagrada, cuja origem judaica está presente nos registros bíblicos e em achados arqueológicos que os corroboram. As festividades judaicas têm há milênios suas datas vinculadas às estações em Israel. O sionismo, o lindo movimento de autodeterminação judaica e de libertação nacional confundido perversamente até mesmo com ideários chauvinistas, preconiza a paz e um Israel seguro _ ao lado da Palestina. Ajudem-nos a terminar com tanta incompreensão.”
Esse foi o artigo. Faltou espaço na seção do jornal em que o texto foi publicado. Mas segue o necessário complemento: o antissemitismo é praga que se traveste ao sabor do contexto e aparece sob diferentes revestimentos se aproveitando de eventuais brechas. Foi religioso quando os judeus eram diferentes por acreditar num só Deus incorpóreo; depois, foi racial, quando se amparava em absurdas teses supostamente científicas; mais adiante, veio o “político”, quando os judeus voltaram a ter sua referência territorial em Israel – de “internacionalistas” e “apátridas”, passaram a “nacionalistas” e “chauvinistas”. É sempre recomendável lembrar, também, que a região de Israel foi chamada de Palestina pelos romanos após a expulsão dos judeus (o filisteu, de onde deriva o gentílico “palestino”, era aguerrido inimigo dos hebreus na antiga Judeia). Antes, no Império Romano, a região era a Judeia, como havia a Bretânia, a Germânia, a Galia (aquela do Asterix) e outras. Em 1,9 mil anos de diáspora, variaram os contextos, mas o antissemitismo se manteve como nódoa da humanidade, adaptando-se sempre, camaleônica, sorrateira e perversamente, às épocas e conveniências.
As transmutações do antissemitismo
Chegamos então ao ponto em que, num primeiro momento, os judeus são vistos como “raça”, “povo”, “intrusos”, “disseminadores de pestes”, “geneticamente degenerados”, “de nariz adunco” e outras características físicas marcantes. Aí, diante do feito histórico e até milagroso de reerguerem sua belíssima nação no espaço inóspito do deserto, e, diante da necessidade de desconstruir essa divina conquista sionista, passaram, ao contrário de tudo o que se dizia antes, a ser desacreditados justamente como povo.
Logo nós, que mantivemos a coesão cultural em meio à dispersão e às perseguições? Logo nós, que tanto perseveramos em nossa cultura, nossa crença, nossas liturgias e valores? Logo nós, a quem sempre foram imputadas até doenças características? Se alguém pode ser caracterizado como povo neste mundo em que o judeu Albert Einstein mostrou revolucionariamente a força da relatividade, esse alguém, evidentemente, somos nós.
Falando em Einstein, é interessante que, de um povo tão pequeno, não por acaso, mas provavelmente em razão da sua coesão e da valorização do estudo, da leitura e da cultura, saíram tantos vencedores do Prêmio Nobel, tantos sábios, tantas referências na construção do mundo civilizado e de suas fantásticas conquistas científicas. Ciência e fé, aliás, cada vez mais claramente, uma só força. Serão elas tão afastadas e compartimentadas? Deus e a força vital. Religião e valores básicos de humanismo. A figura esperada do Messias, o ente evoluído em construção. Toda essa lógica mística, essa religiosidade racional, tudo isso cabe no judaísmo, plural na sua essência. Temos a valorização do indivíduo com a judia Ayn Rand? Temos também, por outro lado, a teoria do Estado promotor da igualdade de oportunidades com o judeu Karl Marx. São caminhos diferentes, mas com o mesmo objetivo! E temos até o judeu Jesus distribuindo sua mensagem de amor sob os ensinamentos da Torá.
Ressalve-se que a própria Torá, no seu rigor monoteísta incorpóreo, descreve situações pouco lisonjeiras até mesmo dos maiores protagonistas. Não há santos, não há ídolos. Isso traz uma mensagem implícita. O judaísmo não tem a dicotomia céu e inferno, algo inexistente, e os judeus têm uma ética a seguir, uma tradição que torna o estudo e a leitura parte da cultura e talvez até o motivo principal para tanta perseguição; mas, enfim, podem ser bons ou ruins. Sob o olhar judaico, o homem é essencialmente humano.
Para ler mais sobre o tema, confere os meus textos anteriores:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
>> Todos devemos ler o livro de Nelson Asnis
>> Conheça a pluralidade generosa e humanista do sionismo
>> Fala sobre Holocausto é a homenagem de Lula ao Ustra
>> Eu acuso
>> Há mais de cem anos, o jornalismo judaico busca empatia
…
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Reprodução