Vi que tinha novidade israelense no cardápio da Netflix e imediatamente apertei o play. Nem ideia do que se tratava! E no começo pareceu mais uma trama sobre gravidez de aluguel. Mas continuei, porque as séries israelenses me aquecem a alma ao tratar elementos familiares à minha vida com uma naturalidade que em nenhuma outra produção, que não as israelenses, encontro (nem nas americanas e argentinas repletas de judaísmo). Temas judaicos são falados como em uma produção brasileira, aparecem elementos comezinhos do cotidiano mais óbvio, sem maiores explicações, porque, ora, são tão comuns! Brit milá é como batizado, Pessach é como Páscoa, Purim é como Carnaval, Chanuca é como Natal, e isso, sendo tratado sem cerimônias, dá um sentimento gostoso de inclusão.
E que bom que continuei, porque a série “A body that works” é uma obra de arte que puxa o sujeito pela mão a cada um dos oito capítulos de 50 e poucos minutos. A própria abordagem sobre o ventre de aluguel é muito mais profunda e realista do que em qualquer outra produção a respeito. Além dos dilemas éticos, a trama nos traz o cotidiano de um casal que convive com a pessoa contratada para ser o veículo (uso propositalmente essa palavra, que realmente choca) pelo qual seu filho inseminado virá ao mundo. A questão é que esse “veículo” é um ser humano, com seus dilemas, seus hábitos nem sempre saudáveis, seus sentimentos e dramas.
O curioso é que, ao lidar com o seu “veículo”, o casal de pais se obriga a ter empatia, a olhar o outro (a outra, no caso) com preocupação, a se esforçar para que a vida lhe seja leve. Você já pensou nisso? O fato poderoso de que aquela pessoa carrega, gesta e alimenta seu filho faz com que o casal busque dar-lhe facilidades de locomoção, conforto e nutrientes. O “veículo” acende um cigarro? Socorro! Sobe escadas? Meu Deus! Come gordura saturada! Nãããão! Transa? Putz! Veja bem! Você provavelmente nunca tenha pensado nisso. Mas um enredo que entra no cotidiano dessa situação revela aspectos jamais imaginados por quem não viveu algo (ainda) tão inusitado.
E todo o tempo a série trata paralelamente, não por acaso, de uma obra literária que vai sendo construída, com a mãe que fertilizou o ventre de aluguel sendo, profissionalmente, uma editora. A relação dela com o autor do livro é de um simbolismo fantástico. Os conflitos e os preciosismos no processo criativo também aparecem ali. E, como em cada instante das cerca de maravilhosas cinco horas e meia da produção, está sempre presente a imperfeição. E isso é muito judaico. Não se esqueça de que estamos falando de uma cultura em que os santos não existem e os seres humanos falham, necessariamente.
As reviravoltas do enredo são resultantes direta e escancaradamente das imperfeições humanas. Os suspenses são resultantes das imperfeições humanas. E é tudo humanamente eletrizante, humanamente verdadeiro e inquietante. Não devo dar spoiler, claro (que vontade!), mas a cena mais decisiva e esperada (você pode imaginar qual é) do filme traz em poucos minutos diálogos reveladores, atitudes definidoras, conclusões inesperadas. O cara fica permanentemente com os olhos arregalados, suando frio com os protagonistas, sentindo as suas dores emocionais e físicas, e elas são intensas. Não tem como deixar de concluir que a série trata, basicamente, da vida.
E vida é ciência. Temos a criação divina e a criação humana correndo paralelamente, no ventre e no livro, mostrando o que significa o preceito bíblico de que o homem é feito à imagem e semelhança divina. Ora, é porque ele cria. Cria arte e cria vida. Não por acaso, as superstições aparecem lado a lado com a medicina. Não por acaso, as decorações com suas mezuzot (o rolinho da Torá colocado nas soleiras das portas) convivem com os computadores e celulares. Nada é por acaso. Tudo é muito simbólico, como costumam ser as histórias bíblicas.
Veja!
E shabat shalom!
Foto da Capa: Captação do Trailer / Youtube
Mais textos de Léo Gerchmann: Leia Aqui.