Na semana passada (leia aqui), posterguei pra esta sexta a elaboração de um texto que trataria (e ainda tratará) das fascinantes entidades judaicas existentes aqui mesmo em Porto Alegre. Algumas de direitos humanos, outras juvenis de diferentes ideológicas, também as femininas. É um universo que vale a pena ser abordado. Mas os fatos novamente me atropelaram (sou jornalista), e a eles volto a ceder. Uma frase do Galvão Bueno no sorteio dos enfrentamentos na Copa do Brasil me fez voltar a uma antiga reflexão. Cheguei a escrever no Twitter: “O que é o amor pelo time do cara! Galvão narrou várias copas do mundo, conquistas incríveis da Seleção (até em nervosas cobranças de pênaltis), mas acaba de dizer, no sorteio da Copa do Brasil, que os gols que mais o fizeram vibrar foram os do mundial flamenguista em 1981”.
Depois, reproduzi esse tuíte no Facebook (e Instagram, que replica) e acrescentei: “Adorei a sinceridade do Galvão! Sou fã dele! Vejo o futuro do jornalismo esportivo necessariamente passando por essa transparência. Entendo amigos que não revelam o time aqui no Rio Grande do Sul (a aldeia é cruel!), mas a radicalização da franqueza e do papo reto denota seriedade. A questão é manifestar a parcialidade dos sentimentos (não são uma opção), mas ser honesto intelectualmente. É possível, sim! A suposta isenção não é garantia de independência.”
Buenas, aí está um bom resumo do que desenvolvo a partir de agora.
Mas desdobremos o tema. Tenho exatos (e incríveis) 37 anos de carreira. Comecei cedo, porque entrei no Jornalismo da UFRGS com tenros 17 anos, e, mesmo fazendo paralelamente a faculdade de Direito (que também terminei), me formei em 1986 e comecei a trabalhar muito jovem. Minha primeira experiência foi no jornal Denúncia, de resistência ao regime militar, ainda quando estudante. E em mim já fervilhavam algumas inquietações.
Exemplo: sempre fui fervoroso torcedor do Grêmio, mas nunca entendi a “lógica” (sic) da rivalidade Gre-Nal. Fui algumas vezes a jogos do Inter no Beira-Rio com amigos colorados e, em algumas ocasiões, até fiquei feliz com a alegria deles. E pergunto aqui: por que não?! Então, em 1992, o saudoso craque Divino Fonseca (editor de esportes em Zero Hora) me convidou para ser setorista do Inter (até então, a minha área de atuação era a reportagem política). Curti a ideia! “Tu não te importa de ir todos os dia ao Beira-Rio mesmo sendo gremista?”, me perguntou o querido e competentíssimo Divino. “Que bobagem! Claro que não!”, respondi. Pra mim, tudo aquilo era muito natural.
Fazendo a cobertura do Inter, vivi experiências que me marcaram para sempre, algumas delas dolorosas. Eu tinha uma relação muito boa com dirigentes (muito em especial os queridos Bráulio Pinto e Luiz Fernando Difini), treinadores (Ênio Andrade e depois Falcão) e jogadores, em especial os zagueiros Argel e Célio Silva, o goleiro Sérgio, o volante Ricardo, os atacantes Gerson, Paulinho McLaren e Wagner. Os jogadores confiavam em mim e me contavam inconfidências. Tipo: salários atrasados em seis meses, contas vencidas, dívidas, dramas familiares (na época, tinha o salário da carteira e o famoso “por fora”, sempre bem mais suculento). E o que eu devia fazer como jornalista? Contar os fatos. Se havia jogadores que não tinham a cabeça focada no trabalho por motivos óbvio e o time ia mal, é uma lógica certeira. Ninguém consegue trabalhar bem sem receber. E eu precisava contar isso, em vez de sustentar a hipocrisia de que o problema era da qualidade dos jogadores ou do treinador. Se eu sabia a verdade, precisava contar! Não era isso o que eu buscava o dia inteiro naquele lugar?
Houve um caso específico que me marcou pra sempre. O atacante Gerson (foto da capa) estava com Aids, e naquela época o HIV era condenação à morte. Eu conversava diariamente sobre isso com ele, sugerindo que contássemos o seu drama como fizera o Magic Johnson na NBA, servindo de exemplo no combate ao preconceito. Mas Gerson se tornara religioso e acreditava que a cura havia surgido pelos canais da fé. E aquele martírio continuou. O Gerson definhava dia a dia, treinando e supostamente se preparando para a volta que nunca ocorreu. Até que eu soube: o contrato havia terminado, o clube não fez proposta de renovação e, automaticamente, ele estava “livre”. Só que, no seu caso específico, era uma falsa liberdade. Ele ficou desamparado. Fiz matéria, óbvio! Página inteira com o título “Gerson está com o passe livre”, edição do Mário Marcos de Souza. Era a minha obrigação. Até ouvi de uma pessoa que o clube estava “livre desse negrão” e, vindo para cima de mim, que “este gremista só quer nos foder!”.
Me incomodei muito, evidentemente. Sofri? Sim. Nunca vou me esquecer de como o “Seu” Ênio, o Casemiro (auxiliar) e o Ithon Fritzen (preparador físico), todos com passagens brilhantes antes pelo Grêmio (e creio que profissionais, mas muito identificados com o meu time), procuravam me proteger (eu era um menino), mas saiu até em publicação que meu pai era conselheiro gremista (e era!). Logo, “o repórter de um jornal da capital…”
Enfim.
Viremos a página. Saí de ZH (para muitos anos depois voltar e ficar um total de 13), fiquei dois anos na Placar, cobri a Copa de 1998 pela Folha de S. Paulo (onde fiquei 11 anos), fui diretor de Jornalismo da TVE. Corri o mundo, amadureci e evoluí pra caramba. Convivi com pessoas que eram profissionais nacionalmente de ponta, de notória independência, permanente busca da isenção e… transparência quanto ao time do coração. Fui muito feliz, em especial na Folha.
Muitos anos depois, então, voltei a ZH para trabalhar na editoria de Mundo (nesse meio tempo, tive a decisiva experiência de ser correspondente da Folha em Buenos Aires, vivendo momentos inesquecíveis que me fazem ainda hoje amar a Argentina e especialmente sua capital). Em 2014, quando ZH fez 50 anos (e eu também), participei do grupo de quatro pessoas destacadas a pensar a editoria de esportes do futuro. E defendi minha convicção de que seria importante (e talvez fosse sadiamente impactante) os profissionais do jornal abrirem seu time. Parece que as colunas de jornalistas identificados com clubes na versão online do jornal são fruto dessa minha sugestão. Evidentemente, sempre acreditei que revelar o time (ressalvemos que partido político é opção, mas clube de futebol é algo natural, que pode vir da infância ou surgir durante a vida, pelas circunstâncias de cada um) jamais foi algo incompatível com a condição de jornalista. Como mostrei no início deste texto, acho até o contrário.
Foi nesse mesmo ano, 2014, que escrevi meu primeiro livro: “Coligay, Tricolor e de todas as cores” (Libretos). No ano seguinte, escrevi “Somos azuis, pretos e brancos” (L&PM na primeira edição e AGE na segunda). E vieram outros cinco, incluindo o muito judaico “A Fonte, a incrível história de Salim Nigri (AGE). Na minha mente ingênua (“despoluída”, prefiro dizer, e como me orgulho – e cativo- isso), eu simplesmente estava contando belas histórias. A da Coligay é um case mundial de respeito às diferenças. O “Somos azuis…” relata, com fatos inequívocos, personagens de carne e osso e alguma interpretação de contextos, a riquíssima e até então pouco falada história de negritude no meu clube, desde sua origem. Eram história que eu já conhecia, mas que tratei de aprofundar pra mim mesmo, como devem fazer os repórteres.
Meu Deus! A aldeia não é fácil.
Muitos entenderam que ali não estava um trabalho destinado a desconstruir o outro ou depreciar a história alheia. Só colocara pontos nos “is”, removia lendas urbanas, dilacerava dicotomias e maniqueísmos infantis e desmantelava narrativas fragilíssimas, que cairiam diante do simples bom senso. Pra mim, jornalismo em altíssimo grau!
Continuo achando que seria um passo importante, no rumo da qualidade e da credibilidade (pilares do jornalismo), os profissionais da imprensa esportiva que se sentirem à vontade enfrentarem a cultura atrasada que sustentamos e assumirem seus times (sei o time de cada colega e confesso que, entre os que mais admiro, a maioria são colorados). A rivalidade Gre-Nal tem na sua essência algumas perversidades; dá vazão até a sentimentos de sadismo. Quem curte futebol (leia “Febre de bola”, do Nick Hornby) sabe que essa identificação provoca euforias e sofrimentos bem intensos, porque há paixão envolvida, e a paixão é a razão de o futebol ser o jogo mais popular do mundo. Não gosto de ver amigo sofrer.
Simples, não?
Agora, é importante não confundir o jornalismo de verdade com alguns simulacros, de pessoas que fazem literalmente o jogo do torcedor mais desqualificado, provocando, desrespeitando e muitas vezes sendo deslavadamente desonestas. Esse dilema também precisa ser enfrentado. Por que dilema? Porque o jornalismo vive da qualidade e da credibilidade. Se o espaço do profissional for conquistado pela matemática dos “seguidores”, que provocam a audiência (e o lucro) imediata, os veículos deixarão de fazer o que deveria ser a sua missão: informar.
Tenho a convicção de que, para ganhar lá na frente, é preciso ceder agora.
A solução sempre estará no conteúdo e na cara limpa.
A audiência fácil e imediata é um veneno. Mata o jornalismo.
Tem o “jornalista identificado” que se torna animador de auditório, e tem o “falso isento” que chega ao ponto de, muito mais que manifestar opinião em vez de informação, destila desejo. Quem é do ramo e conhece a tribo percebe o que dizem os subtextos.
Nem um nem outro, por favor!
Intuitivamente, acho que lá atrás, há nove anos, quando “biografei” a Coligay, eu já sentia que o rumo do bom jornalismo buscava suporte, e esse suporte poderia até ser um livro. E que, dentro do jornalismo, o setor de esportes era o mais sensível, por envolver a paixão.
O importante é nunca abrirmos mão da nossa essência: informar, relatar e buscar a verdade.
Sejamos jornalistas! Sejamos límpidos e verdadeiros!
Shabat shalom!