Neste mundo digital e virtual em que a leviandade não tem limite e a ignorância mostra toda sua robustez, você já reparou que as pessoas defendem teses e bandeiras sem nem saber o motivo? Pego inicialmente o futebol, que é um tema ao qual me dedico em especial na área comportamental: muitas vezes o cara defende algo só porque usa camiseta de determinada cor. Tenho certeza absoluta de que, caso ele usasse a outra camiseta, diria o contrário. O lance é desconstruir o outro, às vezes em assunto sérios e que machucam, incluindo calúnias, apropriações tolas da virtude e negação de fatos. Não me refiro a este ou àquele. Todos são assim. Desonestidade? Às vezes, é. Noutras vezes, é o acometimento de uma doença mais disseminada que a própria Covid. É aquilo que o genial Yuval Harari diz em entrevista e disse em pelo menos dois dos seus maravilhosos livros: em vez de as pessoas serem donas das suas narrativas, são as narrativas que se apropriam do sujeito, e ele se torna refém dela.
Mas a citação do futebol foi apenas ilustrativa, até porque a rivalidade (muito em especial a rivalidade Gre-Nal) seria uma área interessante para profundas pesquisas sobre a vocação humana para a crueldade e o sadismo. No belíssimo “Febre de bola”, o Nick Hornby explica racionalmente a paixão que o futebol desperta (há vários motivos para que isso ocorra) e o envolvimento emocional das pessoas com um time, a identificação que se consolida. Logo, as pessoas eventualmente sofrem de verdade por futebol. E o outro saliva de prazer.
Definitivamente, isso nunca me mobilizou.
Pelo contrário, sonho com o dia em que a meta dos aficionados pelo futebol deixe de ser a desconstrução do adversário (destruir o diferente é a essência da pior ideologia que o ser humano já criou…). Nesse dia, talvez possamos falar a sério em combate pra valer ao racismo, à homofobia, à misoginia e a outras violências contra minorias. Seria lindo!
Enfim. Vamos ao grão. Vou citar cinco situações que me parecem incompreensíveis.
- Pronome neutro (ou “inclusivo”, como prefere com razão meu amigo e colega de SLER Marcos Bliacheris). Ok. Eu também não tenho muitas certezas sobre a adoção dessas mudanças. Confesso que simpatizo com elas, mas talvez não seja o adequado por uma série de questões técnicas da gramática. De qualquer forma, por que algumas pessoas se sentem tão atingidas por isso? Por que vociferam tanto contra? O que as atinge? Minha opinião: tivemos recentemente mudanças desnecessárias na língua portuguesa. Tiraram o trema (que saudade!), sacaram acentos diferenciais importantes e provocaram uma gastança enorme em trocas de livros, adaptações, cursos etc. Por nada! O pronome inclusivo tem motivos pra ser proposto e vem do processo evolutivo, dos jovens que respeitam a natureza alheia, a origem, a cor da pele, a sexualidade, o gênero. É lindo isso! E eles querem ver no uso da linguagem esse processo evolutivo. Ora, por que alguém é contra isso? Por que alguém se incomoda tanto, a ponto de vociferar raivosamente e xingar quem defende essas mudanças? O que há com você?
- Greta Thunberg. Meu D’us! O que essa menina fez de tão grave pra merecer tanto ódio de algumas pessoas? Ela defende o meio ambiente! Será possível que alguém seja contra essa pauta, que, ao fim e ao cabo, é trata da nossa sobrevivência? Outro dia eu conversava sobre isso como o já citado Marcos, e ele cogitou uma explicação: a direita e a extrema direita são contra tudo o que representar diminuição nos lucros. Faz sentido. Seria, então, por ganância. Ora, mas tem profissionais de diversos setores, incluindo os autônomos, que tem verdadeira raiva da Greta. Por quê? O que incomoda tanto? Se a questão é a diminuição dos lucros, a conclusão até óbvia é que muitos terraplanistas da atualidade são usados por um sistema altamente perverso.
- O hino rio-grandense. Tchê loco! Esse hino já passou por mudanças e ninguém quer fazer alterações tão essenciais. Por que tanta raiva? Por que isso incomoda? Nesse caso, nem penso: sou 700% a favor da mudança. Se um segmento tão importante da nossa sociedade como é o afrodescendente se sente ferido, basta pra nem discutirmos o assunto. E eu acho que eles têm razão. Já ouvi a letra inteira e escutei todos os argumentos, que dizem não haver racismo ali. Pra mim, há, sim. E importa muito menos o que diga quem não tem o lugar de fala nesse caso. O fato é que é totalmente legítimo o sentimento de quem se vê ultrajado pelo verso que fala em ser escravo quem não tem virtude. Como o único povo escravizado no Brasil foi o de pele negra, ora, é totalmente compreensível a reclamação. E o que mudaria. A métrica? Não. A estrutura do texto? Não. Seriam uma ou duas palavras e ok, bola pra frente. Mas tem cara que fica muito revoltado com esse pedido tão simples. Por quê?!
- Casamento homoafetivo. E acrescento aqui a possibilidade de um casal homoafetivo adotar uma criança órfã, que precisa de amor. Por que alguém é contra isso? Como isso pode atingir outra pessoa? Vejo essa questão e só identifico amor nela. Por que alguém é contra o amor? É pela família? Eu também sou a favor da família. Posso ser visto como alguém conservador nesse assunto. Acho que casais precisam tentar ao máximo manter um lar, nos bons e nos maus momentos, porque isso implica muitas coisas, incluindo a sanidade dos filhos. Acho lindo quando vejo uma família bem estruturada. Vibro quando vejo amigos numa relação estável e com filhos sadios. Sou tão conservador nisso, que quero estender para os homossexuais. Não é esse o principal motivo. O principal motivo é a vontade de ver o amor triunfar, e todo tipo de amor vale a pena. Mas tem também minha afeição conservadora pela família bem estruturada. E volto à pergunta: você, que é conservador como eu nesse tema, por que resiste tanto a ampliar e, com isso, fortalecer a família? Percebam como é irracional.
- O direito dos judeus ao seu lar ancestral. Esse assunto volta e meia aparece aqui. Por quê? Ora, porque sou judeu. Acho lindo quando negros usam seus espaços, os LGBT idem. Por que eu não posso fazer o mesmo? Então, vamos a Israel, sempre ressalvando que isso não significa rejeição a um estado palestino, do qual sou totalmente favorável. Só não sou ativista porque há um conflito, e eu estaria ao lado de quem é contra mim. Mas quero dois Estados soberanos e em paz. Tá. E Israel? Ora, Israel é a terra ancestral de um povo que ficou 1,9 mil anos enfrentando as maiores crueldades por motivações étnicas na diáspora. Há espaço para todos. Há vários países árabes no mundo, e nenhum judaico além de Israel. E é lá. É só lá. Faz 4 mil anos que rezamos voltados pra lá. O Tanach (Antigo Testamento para os cristãos) existe há milhares de anos e atesta ali a presença judaica naquilo que foi a Terra de Israel (as 12 tribos), depois passou a ser a Judeia (como a Bretanha, a Germânia e a Galia do Asterix) e, por sacanagem dos romanos, tornou-se Palestina (que vem do gentílico “filisteu”). Nenhuma linha fala de outros povos atuais que não o hebreu. Por que ser contra Israel? Não me refiro a eventuais erros do governo. Refiro-me à própria legitimidade do país. O irônico é que poucos povos no mundo têm tanta legitimidade a um território. Claro, nesse caso, o antissemitismo, tão penetrante na cultura ocidental, em suas diversas modalidades, é o motivo. Mas repito: por quê?!
Fecho os cinco fatos, mas poderia ir longe.
Nome para isso? Ignorância, preconceito, falta de humanismo.
Pouco me importa o nome que se dê.
Só me importa pôr a bola ao centro, refletir e perguntar: por quê?!
Shabat shalom!