Começo este texto perfilando rapidamente certo político cujo nascimento para a vida pública acompanhei de perto por viver e trabalhar como correspondente no seu país. Confesso que eu inclusive o admirava e sentia afinidade com sua visão de mundo. Refiro-me ao argentino Aníbal Ibarra, o ex-procurador federal e flamante prefeito de Buenos Aires entre os anos 2000 e 2006, quando tinha quarenta e poucos anos. Ibarra era um típico social-democrata, respeitadíssimo, com ideias humanistas. Integrava a Frepaso, que era a ala esquerda na chamada Aliança Frepaso-UCR, de oposição ao presidente Carlos Menem no fim dos anos 1990 (quando eu estava lá). Ao seu lado, tinha gente como Graciela Fernández Meijide e Chacho Alvárez, mas era ele quem se sobressaía na mídia como o nome do futuro.
Sim, foram eles que apoiaram Fernando de la Rúa (UCR), o presidente de turno naquela que foi talvez a maior crise socioeconômica vivida pelo país, filha de vários pais e mães. E Ibarra foi eleito e reeleito prefeito pela mesma força política. Só que um caso semelhante ao da boate gaúcha Kiss, de Santa Maria, com 194 mortos, o levou a ser destituído do poder em juízo político e entrar no ostracismo ao menos para cargos executivos (elegeu-se deputado) por “mau desempenho”.
Ou seja, o Caso Cromañon interrompeu a trajetória de Ibarra, um político cotadíssimo para voos altos, até presidenciais.
Veja bem. Santa Maria, no Rio Grande do Sul, tem 283.677 habitantes, e Buenos Aires (capital federal) tem 3.121.707 habitantes. Ou seja, Buenos Aires tem 11 vezes mais habitantes que Santa Maria, onde morreram 242 pessoas na Kiss. Evidentemente, é muito mais difícil e complexo de administrar Buenos Aires, e ainda por cima o número de vítimas na Kiss foi maior que na Cromañon. E Ibarra foi deposto, deixou de ser referência. Seria motivo de espanto e revolta se fosse premiado com uma secretaria na província. Se Ibarra fosse secretário do Planejamento ou da Segurança, isso seria visto como um acinte aos familiares das vítimas, uma afronta, uma vergonha, um símbolo de leniência premiada, um incentivo ao desleixo. Onde já se viu algo assim?!
Eu sei onde já se viu algo assim. Não citei nomes de políticos brasileiros; deixo as lacunas para você preencher.
Precisamos, então, em meio a tragédias da Kiss, da Cromañon ou das cheias que flagelam e matam atualmente em Porto Alegre, responsabilizar a ganância, a falta de empatia, o cinismo, o egoísmo, as “liberdades individuais” deletérias e a maldade da leniência, e essas ações ou omissões têm autores, não podem ser vistas como erros sem dono, como verbos intransitivos.
Uma mudança de conduta e mentalidade é urgente. Só o mais tarado negacionista de extrema direita não enxerga que tem muita coisa errada, tem muito parafuso a apertar, muito ajuste a ser feito. Não devemos falar só sobre prevenção às tragédias, mas também sobre a prevenção para que elas não ocorram. Não era para ocorrer a tragédia! E, se somos irresponsáveis e ignorantes a ponto de eleger e achar normal o descaso deletério, o desmatamento, os controles frouxos e a omissão criminosa, precisamos refletir sobre a nossa mentalidade e nossos rumos. Há erros, e erros precisam ser detectados e corrigidos.
Se ficar impune, vai se repetir.
Não me interessa se você é um exaltador do estado democrático como regulador das relações humanas para o estabelecimento da Justiça, ou se você acredita que o individualismo do ser humano será propulsor de um progresso que chegará a todos.
Foda-se se você é de esquerda ou direita.
O importante é ter bom senso.
Só o bom senso salva. E a lucidez.
…
Tanto a direita ignorante quanto a esquerda dogmática têm seus pecados de lesa-lucidez. De absoluta falta de bom senso.
Tenho observado como sempre a política argentina. E mesmo lá, onde o suprassumo do “anarcocapitalismo” está no poder, não adianta: o Estado teve que entrar em campo vestido de azul e branco. Duas situações são exemplares. Primeiro, o presidente Javier Milei teve de contrariar seus princípios individualistas para impor limites nas vendas dos repelentes, porque o ser humano, egoísta como muitas vezes é, tratou de esvaziar as prateleiras dos mercados para assegurar a sua proteção contra a dengue, fazendo uma banana pros outros; depois, os planos de saúde, que deixaram as garras crescerem diante da liberalidade liberal, foram chamados a devolver “la guita” especulativa. Pois é, Milei, esse ente eleito democraticamente, ao qual costumamos chamar de governo e Estado, existe pra isso. Captou? É inevitável.
Confesso que me deliciei e até sorri sarcasticamente ouvindo estas frases do ministro da Economia, Luis “Toto” Caputo:
“A muitos, se escapou das mãos (exagerou). Foi o que ocorreu com as ‘prepagas’ (planos de saúde). Eu me incomodei.”
“Há um choque de demanda pelos repelentes, e a oferta não pode responder rapidamente.”
Poderíamos falar sobre o terraplanismo, a cloroquina, o meio ambiente, a resistência à vacina e à ciência em geral e outros absurdos. A lista de despautérios dessa turma é longa.
E a esquerda dogmática e sectária? Ora, eu nunca dei muita bola quando resistiu a assinar a Constituição de 1988, hoje tão festejada como a carta da democracia; até entendi quando, antes, os caras não votaram no Tancredo contra o Maluf, na saída possível da ditadura; fico impressionado com o erro na contundência contra o muro da Mauá (hoje um guardião até insuficiente contra as cheias); mas me incomodo demais quando os caras justificam terroristas e se aliam a aiatolás contra Israel, porque me toca na identidade. Então, veja bem, também ali há tolices, umas mais graves que outras (apoiar os terroristas é autorizar discursos e ações antissemitas, e isso é muito sério).
Enfim, repito a que vem esse texto, com um conteúdo de destino ambidestro: por favor, pessoal, tenhamos bom senso. E lucidez.
Certamente é o primeiro passo para um mundo melhor.
PS: diante de tantos assuntos prementes, não abordei como gostaria, mas deixo registrada aqui no pé da coluna a minha torcida entusiasmada por Claudia Sheinbaum nas eleições presidenciais mexicanas. Cientista premiada (fez parte de um grupo que ganhou o prêmio Nobel em 2007 por suas pesquisas sobre a crise climática), ambientalista, mulher, judia, pacifista e defensora de dois Estados seguros, Israel e Palestina. É a candidata de Obrador, o atual presidente, de esquerda, e governou a Cidade do México. Minha esperança é asteca.
…
Shabat shalom!
Foto da Capa: Homenagem às vítimas da tragédia de Cromañon, em Buenos Aires | Wikipedia
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