Como os assuntos se tornam delicados quando o que está por trás deles é o preconceito! Porque o preconceito cega o autor, deturpa o conteúdo e invisibiliza o alvo da sua leviandade!
Exemplo: é evidente que sou contra qualquer morte na estupidez de uma guerra. Mas vamos relembrar? Quem hoje está de dedo em riste acusando Israel de excessos na necessária reação ao grupo genocida e terrorista Hamas, que, além dos assassinatos que promoveu, mantém mais de 200 reféns, já o acusava antes da resposta ao pogrom devastador de que foi vítima em 7/10. A internet e as redes sociais têm essa característica: aquilo que você falou antes continua ali. Os discursos inacreditáveis na Cidade Baixa justificando a monstruosidade do Hamas ocorreram antes da reação de Israel.
Meu problema jamais foi com as críticas a um governo israelense que eu próprio sempre deplorei, uma coalização de extrema direita fundamentalista, que representa valores frontalmente contrários aos meus e, ouso dizer, aos do próprio judaísmo. Um governo truculento que tenta esvaziar o Judiciário.
Agora vamos falar da política nacional e dos judeus. A imagem recente mais famosa e recorrente é a do Bozo sendo recebido na Hebraica do Rio. Os caras falam até hoje nos estúpidos que o assistiam e aplaudiam sua deplorável palestra, fazendo questão de ignorar que, no lado de fora do clube, tinha muito mais judeus protestando contra a presença do palestrante.
Ah, em 2018 os judeus votaram em peso no Bozo, você diz. E eu corrijo: primeiro, isso não é verdade. A comunidade judaica é plural, havendo judeus da esquerda à direita. Mas é basicamente de classe média (judeus têm características culturais de coesão e valorização do estudo como algo essencial que lhes permitem ser majoritariamente desse setor da sociedade), e aí é que está. Enorme parcela da classe média brasileira, em geral, votou nesse cara, e a comunidade judaica em geral faz parte desse estrato.
A minha opinião? Lamento, porque, além de o Bozo defender horrores que tenho como inadmissíveis, parte da sua base de apoio é neonazista. Evidentemente que não acho que o bolsonarista é necessariamente nazista nem fascista (muitos votaram nele como protesto contra o que repudiavam em governos petistas), mas é certo que 100% dos neonazistas o apoiam e o veem como o representante ideal. Ou seja, nem todo o bolsonarista é nazista, mas todo nazista é bolsonarista; assim como nem todo esquerdista é antissionista, mas setores importantes da esquerda estão tomados por essa vertente moderna do antissemitismo que rejeita o lar ancestral judaico.
Mas, ressalvada a minha opinião francamente antifascista e notadamente avessa ao antissionismo (a teoria da ferradura…), comprovável por todos que queiram checar minhas postagens em redes sociais e mesmo meus textos aqui na SLER, devo dizer que, apesar de discordar sempre de quem votou no Bozo (jamais eu votaria nele!), entendia e entendo quem fez isso porque via problemas sérios e reais em figuras do campo ideológico com o qual me identifico (o progressista). E digo isso com dor.
Neste momento do texto, preciso reiterar com palavras muito diretas, para deixar claro, que separo o bolsonarista raiz do bolsonarista de ocasião. Discordo muito de ambos, mas só repreendo profundamente o bolsonarista raiz – o troglodita negacionista que renega os direitos de minorias, defende a ditadura, se opõe à vacina e acredita que a Terra é plana.
Dito isso, vou ao ponto: diante de tantos discursos antissionistas, nessa roupagem moderna do antissemitismo, acho incrivelmente alta a quantidade de judeus, como eu, que, apesar de tudo, votaram contra e sempre votarão contra o Bozo. “Incrivelmente” não por ser o Bozo, porque é da natureza de judeus votarem contra o fascismo. A questão é que, apesar dos absurdos Paulos Pimentas e Gleises Hoffmanns, votou-se em peso em seus companheiros ideológicos contra o bolsonarismo.
Até abro meu voto ao governo do Estado em 2026 caso se confirme a disputa entre Paulo Pimenta e Onyx Lorenzoni. A não ser que surja uma alternativa a eles, com certeza anularei o voto.
Entre antissemita e fascista, nenhum deles.
A rejeição a ambos é natural, automática e irreversível.
Aliás, vejo muitas semelhanças nas cegueiras do antissionista que nega o direito de Israel existir e invisibiliza os judeus, e o fascista que defende a ditadura militar e nega a ciência.
São estúpidos! E, para mim, no mesmo e elevado grau.
Como conhecedor de cada lajota das ruas do Bomfim, como alguém que tem mais de meio século respirando judaísmo, asseguro: em especial diante dos pavores que víamos numa esquerda tomada por certos discursos francamente antissemitas, é um milagre que seja enorme o contingente de judeus que aparentaram ignorar os setores que lhe são refratários na esquerda e, por convicções ideológicas, votaram nela.
A esquerda parece querer empurrar os judeus para a direita.
E aqui vai outra confissão: sou eleitor da esquerda e da centro-esquerda desde meus 18 aninhos, mas faz décadas que procuro me informar bem sobre as posições do meu eventual candidato em relação ao direito de Israel existir e se defender.
Meu filtro ficará ainda mais aguçado a partir do 7/10.
Ok. Mas por que todo esse assunto aí em cima? Porque dias atrás surgiu uma situação similar à do Bozo na Hebraica-RJ.
O embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, foi severamente criticado por ter se encontrado com o Bozo e com deputados da direita brasileira na Câmara do Deputados.
Dito assim, eu próprio condenaria.
Mas vamos aos contextos?
Dias antes do encontro, a embaixada israelense convidara 300 parlamentares de todo o espectro político-ideológico para assistir ao vídeo do pogrom violentíssimo perpetrado pelo Hamas em Israel (vídeo em que aparecem os próprios terroristas matando deliberadamente tudo o que se mova e apareça à sua frente, exibindo o “feito”, dançando e se regozijando de terem executado judeus de todas as idades e até seus animais de estimação com requintes de uma crueldade inacreditável). No vácuo deixado pelos parlamentares de esquerda, que ignoraram o convite, Zonshine encontrou só quem foi até ele.
Tinha como ser diferente?!
Depois, diante das previsíveis e simplificadoras (o preconceito simplifica) reações contrárias, Zonshine teve de dizer o óbvio: não cabia a ele ficar na porta da sala onde ocorreu o evento controlando e filtrando as pessoas que aceitaram o convite.
E lá estava o pessoal do campo da direita.
Além de rejeitar o convite, o pessoal da esquerda criticou o evento porque acorreram a ele os convidados que o aceitaram.
Me parece tão… tão… óbvio!
Mas o preconceito cega e distorce.
A máxima “ninguém solta a mão de ninguém”, do campo de oposição ao bolsonarismo, parece ter soltado a mão judia!
E por isso reitero: diante de absurdos como esse, é até surpreendente a quantidade de judeus do campo progressista que insiste em respeitar suas convicções; diante de tamanhas afrontas, é milagrosamente enorme o contingente de judeus que votam nos candidatos dessa esquerda contaminada pelo discurso antissemita dominante; e asseguro que é relativamente muito pequena a quantidade de judeus eleitores da direita.
Poderia ser muito maior do que é.
Teria muitos motivos para tanto.
Falta do campo da esquerda o convite aceito e a mão estendida.
Ninguém aperta uma mão que o ignora.
…
Para ter contextos que ficaram de fora deste texto, sempre por questão de espaço (dá vontade de repeti-los infinitamente), leia outras colunas que escrevi recentemente sobre este assunto:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
…
PS: este texto já havia sido enviado para publicação quando o presidente Lula recebeu brasileiros que vieram de Gaza e fez uma frase desastrosa ao comparar a violência deliberada de um grupo terrorista manifestamente genocida com a reação do governo de Israel, que era inescapável (como não buscar os facínoras e resgatar os reféns?!). São muitas e profundas as diferenças, e fazer um paralelo entre as duas situações é algo muito grave. É legítimo contestar o grau de violência militar israelense que vitimou civis na reação após o pogrom de 7/10? Óbvio que sim! Mas são situações incomparáveis, até porque uma provocou a outra (e tenho texto aqui mostrando como é leviano usar o “mas…”). Outro problema é que Lula recebeu os brasileiros que estavam em Gaza, e nem um pito é dado sobre os 240 reféns ainda mantidos com o Hamas; nem parece que o pogrom executou três brasileiros (um deles gaúcho, conhecido de muita gente). Pior: nenhuma autoridade foi receber os brasileiros que chegaram de Israel depois do absurdo 7/10.
Vão aqui dois bastidores: anos atrás, eu fiz uma longa entrevista com o então presidente e candidato à reeleição Lula num engarrafamento entre a Expointer e o Aeroporto Salgado Filho. Era realmente um engarrafamento enorme, e nós conversamos bastante. Um dos assuntos foi Israel, e ele me falou com muita convicção de que são necessários dois Estados, ele defendeu muito o direito de Israel existir e se defender. Ok. Agora, outra situação: nas eleições de 2022, o coordenador da campanha no Rio Grande do Sul era o Paulo Pimenta, um sujeito cuja má vontade com o povo judeu é notória. Então, Lula veio, e a agenda previa se encontrar com as comunidades palestina e judaica. Só houve encontro com um grupo que representa a comunidade palestina e que costuma defender o slogan “do rio ao mar” (uma frase genocida, que implicitamente varre o Estado judeu do mapa). Falei com algumas pessoas do PT que repudiaram a parcialidade e manifestaram verdadeiro asco em relação ao coordenador da campanha. Conclusão: tem muita pimenta no angu do presidente. Isso provoca problemas intestinais.
Esse episódio do presidente recebendo os brasileiros que chegavam de Gaza ocorreu depois de eu ter enviado o texto. Mas preferi, em vez de mexer na estrutura, utilizá-lo como PS, porque só reforça a tese de que os judeus sentem a ausência de uma mão estendida para ser segurada. E isso é brutal!
…
Shabat shalom!