Sim, somos um bando de egoístas e otários.
Egoístas e/ou otários pra ser mais preciso.
Dias atrás, uma mulher me cortou a frente no trânsito de forma ostensiva, mas eu me recolhi a tempo. Sou craque na direção defensiva. Logo adiante, paramos lado a lado numa sinaleira, e eu, delicadamente, perguntei-lhe: “Por que tu fizeste isso?” E ela respondeu: “Eu não te vi.” Olhei pra ela e me veio uma rara presença de espírito (sou ruim nisso de ter presença de espírito, acho que porque odeio debates acalorados e brigas. Pareço aquele antigo personagem do Jô Soares que pensava numa resposta muito depois): “Tu não percebes que o problema é, justamente, não teres me olhado? Devemos olhar o outro.”
Parabéns, Léo! Touché!
E juro que desfiei essa sabedoria saída das entranhas com a voz pausada da serenidade.
Duplo touché, Léo!
As pessoas não olham o outro.
A oportunidade de estar com a identidade aparentemente coberta por uma tela de computador ou por uma redoma de metal chamada “automóvel” nos transforma em bestas covardes e egoístas. Fazemos coisas que, mostrando a cara, nem cogitaríamos, ou que, sendo flagrados, balbuciaríamos um pedido de desculpas, muito envergonhados.
Mas é que somos egoístas.
A ética se vê quando o sujeito não sabe que é visto.
Li isso em algum lugar. Estou com preguiça de googlear.
Mas é uma baita definição.
No trânsito, é exasperante tanto o motorista que anda devagar pensando que o mundo pode dirigir no seu compasso (os dos aplicativos muitas vezes fazem de seu veículo automotor um escritório e andam como quem está de pernas espichadas, dando baforadas num puro), quanto o piloto fodão que faz rali porque PRECISA te ultrapassar e acumular adrenalina.
Ambos só olham pro próprio umbigo.
Você que dirige nas ruas de Porto Alegre e creio que nas outras cidades também, já reparou que a regra da “preferencial” entrou em profunda obsolescência?
Claro! É a vitória do “meu pirão primeiro”.
Alguns cínicos chamam de “liberdades individuais” e as defendem como naturais.
Não, pessoal, o ser humano é naturalmente gregário, e o humanismo é gentil e solidário.
A nossa natureza é a da civilidade. Selva é pra bichos.
Teve outra ocasião em que uma figura veio cortando meio mundo com sua ampola de metal motorizada, e a vi vindo pelo retrovisor. E vinha que vinha. Quando chegou ao meu lado, fez pisca pra se enfiar na minha frente. Eu teria que me encolher e não me encolhi. O cara espetou o dedo médio no ar, olhando furibundo pra mim e dizendo “eu dei o pisca”. Que feio! E eu, observando o tal Indiana Jones do asfalto, olhei com ar de desprezo e pensei: fazer o sinal de pisca pra tomar a frente dos outros e achar que isso é legítimo equivale a uma pessoa na fila do supermercado pedir licença pra passar à frente do outro.
Sacou?
Às vezes, não é de regras escritas que falamos, mas de bom senso.
O bom senso é a maior das leis, é a Constituição da Humanidade.
A Carta Magna Universal.
A lei maior da convivência.
Nem vou falar dos idiotas que poluem as redes sociais. Racistas, fascistas e cretinos em geral fizeram há tempo eu silenciar os comentários quando posto em X e Facebook.
Se não silenciar, não posto.
Já gastei muito tempo e energia, tempos atrás, debatendo com ignorantes e imbecis.
Ou, em outras palavras, burros e maus.
…
Mas por que também somos “otários”, como diz o título deste texto?
Porque há certos egoísmos que aceitamos bovinamente.
E uso a primeira pessoa do plural de forma apenas retórica.
Prefiro passar por antiquado, mas não normalizo e até rejeito alguns novos usos.
Vamos a uma breve lista?
Você recebe dezenas de golpes ou telemarketings invasivos por semana no celular e acha isso normal?
Você acha normal pagar mensalmente um streaming e ainda ter que pagar um preço caso queira ver o jogo do seu time num “substreaming” alojado no streaming?
Você acha normal chegar ao aeroporto e ter que pagar estacionamento pra uma empresa muito gananciosa se ficar mais de 10 minutinhos ajudando freneticamente uma pessoa a embarcar ou desembarcar com as malas, podendo ser um filho ou um idoso?
Você normalizou que, pra estacionar brevemente o carro porque precisa fazer alguma atividade urgente (ou não), deve pagar a uma empresa privada, lá sei eu de quem, que tomou conta da rua (o que é ou deveria ser mais público do que uma rua?)?
Você acha normal que o ambiente do futebol, sob o “álibi” da ludicidade (sabemos que futebol é muito mais que um jogo) e com o escancarado incentivo de certa mídia que lucra com isto, sirva de pretexto pra apagamentos, violências e desconstruções, com a real, e não apenas folclórica, negação do outro?
Você acha normal que alguém leia o livro de um autor (ocorreu com uma amiga, autora muito talentosa, que foi criticada com frases sobre o seu próprio pai, jornalista como ela e já falecido) e demula o trabalho da pessoa sem perceber o sofrimento que causa?
Você acha normal tamanha falta de empatia?…
E ainda se diz “humanista”?!
Não, nem vou entrar na polarização emburrecedora que leva até médicos direitosos a rejeitarem vacinas e endossarem placebos ou supostos humanistas de esquerda a negarem o direito de os judeus terem o seu lar e ainda dizerem que eles se “vitimizam” (palavra muito usada pela extrema-direita se referindo a minorias historicamente perseguidas ou segregadas). Não estou com saco de falar de gados destros ou canhotos.
Vou parar por aqui porque meu estômago exige e porque a estupidez humana é infinita.
Mas volto a dizer: o ser humano, em geral, tem se mostrado muito egoísta e/ou otário.
O pior de todos é o que acumula essas duas tristes condições.
Isso me leva a pôr em questão minha antiga fé na humanidade, porque é mau e burro.
E, quando são muitos, fazem eu sentir uma absurda solidão.
…
PS: citei aí em cima alguns casos emblemáticos muito ligados ao modo de vida atual. Tem outros terríveis que eu nem relacionei por óbvios, que são os mesmos de sempre, que persistem desgraçadamente séculos afora, mas, como veremos, são ainda piores hoje. Exemplos: racismos (no plural pra dar conta da variedade), homofobias e burocracias. No caso de racismo e homofobia (e também misoginia), com a quantidade enorme de informações científicas que temos desde o fim das trevas medievais, são cada vez mais inadmissíveis. Sempre foram injustificáveis, mas, se o senso comum era obscurantista, as pessoas completamente desinformadas que lhe davam vazão tinham um certo “álibi” triste de repetir o discurso das “autoridades” eclesiásticas no assunto. Desde o avanço da ciência, com a Revolução Francesa e o Iluminismo, se sabe com mais e mais clareza que tez e etnia não configuram “raça”, que homossexualidade não é doença nem opção e que mulher produtora de cerveja não é uma bruxa diante da poção mágica. Quem insiste nesse ódio não tem empatia pelo enorme sofrimento alheio nem compaixão. É mau! Sim, estou dizendo que é ainda pior que um analfabeto medieval contaminado pelos dogmas que ditavam todas as regras de comportamento. E a burocracia é outro assunto, bem mais contemporâneo. Mudou rapidamente de analógica pra digital. Se antes o cara tinha uma urgência e enfrentava o olhar de paisagem, insensível, de muitos funcionários, fossem eles atendentes de repartição ou policiais, hoje fica longos minutos num labirinto cheio de números, armadilhas, propagandas e (o menor dos males) musiquinhas de elevador até ser atendido por um robô com som de teclado sendo dedilhado (!). Ah, a propaganda. Tchê, que troço grudento! Saudade do tempo em que ela vinha num outdoor. Também aparece na abertura de uma cancela do supermercado ou no teu próprio aparelho celular. Entra pelos poros. E, diante de tudo isso, repito: nunca vou achar normal.
…
Shabat shalom!
Todos os textos de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA.