Algumas lições só o tempo nos ensina. Por terem frequentado intensamente meus pensamentos ultimamente, dois exemplos me vêm à mente de forma automática: a opinião necessariamente deve vir depois da informação, e a afronta a essa lógica empobrece o nosso ambiente, indo do futebol à política (me lembro quando fiz jornalismo esportivo, apurava e contava em matérias o que estava ocorrendo nos bastidores, coisas que os dirigentes com razão tentavam manter sob discrição, para que entendêssemos o que aparecia no campo de jogo; na maioria das vezes, não temos nem ideia do que falamos, e incluo aí até mesmo o jornalismo, a chamada “mídia tradicional”).
E uma causa justa, vista pelas pessoas em geral como “vitimização”, “bobagem”, “mimimi”, “chatice” ou até como algo improcedente, precisa ser brandida insistentemente, com convicção e perseverança, por quem enxerga a justa relevância nela ou até intui que, anos ou talvez até décadas adiante, o assunto entrará nos cânones mainstream e passará a ser aceito e até endossado – e isso requer, além de visão e sabedoria, uma enorme paciência de quem a defende.
Os exemplos são vários, e creio que o livro que estou para lançar pelo selo SlerBooks (sim, a Sler terá uma editora! Viva!) com o título “A cronologia do Alef Bet: o abecedário judaico contra a ignorância e a maldade do antissemitismo” está entre eles.
Mas quero falar de algo que virou notícia nos jornais portenhos apesar de existir há 33 anos como projeto e há quase 16 como espaço cultural: o Teatro Cego. Quanta abnegação está por trás de quem sustenta essa importante iniciativa, e como essa iniciativa era relegada ao campo da exclusão! Quanta civilidade!
Agora, Facundo Bogarín, 36 anos, que é cego e tem toda a família cega (pais, irmão e, por incrível que pareça, até o cãozinho), está com um concorrido espetáculo em Buenos Aires. Bogarín é o atual diretor da companhia portenha Teatro Cego.
Estreou este mês a peça “No hace falta verte, campeón”, uma peça teatral de Martín Bondone que se desenvolve em completa escuridão e convida o espectador a viver a paixão pelo futebol pelos olhos de alguém que nunca viu um jogo.
Os relatos são inspirados na vida do próprio Bogarín, mostrando como um cego também desfruta da vida dos videntes e tem conexão com a emoção do futebol e a paixão que ela desperta. E o “campeão” do título da obra é o grande ídolo do protagonista, o craque inquestionável Lionel Messi.
A vida de Bogarín faz eu pensar em duas vivências minhas: sou o biógrafo do torcedor-símbolo gremista Salim Nigri dos anos 1940 até o início deste século, que era judeu e cego; e sou entusiasta de primeira hora do Festival de Cinema Acessível, o espetacular e bem-sucedido projeto do meu amigão Sid Schames, que leva a magia dos filmes a todas as pessoas com deficiências.
Bogarín viu seu ídolo Messi do lugar que ignoramos, porque a falta de empatia e o cinismo são uma marca dos nossos tempos, que correm na contramão de iniciativas importantes como essa. E é desse lugar ignorado que se fala quando se mostra a conexão com a paixão e o pertencimento proporcionados pelo futebol. O texto é todo baseado em fatos reais e mostra a importância da audiodescrição. O próprio amigo Martín Bondone (que dirige o espetáculo) descrevia a Bogarín lances e cenas dos jogos.
Além de ser ator e de dirigir o Teatro Cego, Bogarín atua “além da escuridão”, como ele próprio costuma dizer. Em 2022, por exemplo, participou do elenco da divertidíssima série “División Palermo”, criada e protagonizada por Santiago Korovsky, que trata de um destacamento da polícia composto por minorias dos diversos tipos (Bogarín, claro, é o cego). A série entrou no cardápio da Netflix em 2023 e terá nova temporada em breve.
Bogarín enaltece aquela que também é a missão essencial do Festival de Cinema Acessível do meu amigo Sid Schames, aqui de Porto Alegre: provocar empatia, fazer as pessoas se colocarem nos sapatos dos semelhantes de baixa ou nenhuma visão. E o resultado, diz ele, é gratificante. E ele traz semelhanças também com outra vivência que tive nessa área. Ficou cego aos 15 anos, por problemas hereditários, como Salim Nigri ficou, pelos mesmos motivos, quando chegava aos 20 anos.
Se você estiver em Buenos Aires, fica a dica: “No hace falta verte, campeón” tem sessões às 21h dos sábados, na sede do Teatro Cego, que vida no bairro Villa Crespo, na Susini, 2280.
Saiba, em 10 pontos, mais detalhes da iniciativa, que os próprios promotores definem como “uma companhia de teatro especialista em contar histórias na absoluta escuridão”.
Eis:
1 ) Já recebeu dezenas de prêmios.
2 ) É uma experiência completamente imersiva.
3 ) Procura despertar a imaginação.
4 ) A técnica do Teatro Cego surgiu há 33 anos em Córdoba.
5 ) Ricardo Sued, o criador, se inspirou em técnicas zen.
6 ) Em 2002, estrearam a peça “A ilha deserta”, de Roberto Arlt.
7 ) Em 4 de julho de 2008, inaugura-se o Teatro Cego.
8 ) Neste dia 4, portanto, o espaço completa 16 anos.
9 ) Com justificado orgulho, os fundadores dizem que é o primeiro espaço desse tipo em todo o mundo.
10 ) Os responsáveis asseguram: nenhuma outra cidade na América Latina é tão amigável aos cegos quanto Buenos Aires.
E viva o respeito às diferenças e a inclusão.
…
Shabat shalom!
Foto da Capa: Reprodução do Youtube.
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