Como já falei em uma coluna do início de 2023, há um grande aumento no número de pessoas que se descobrem autistas. A cada estudo que é divulgado mostrando isso, logo surge a ideia de que estamos vivendo uma “epidemia de autismo”, o que é categoricamente rejeitado pelos especialistas no assunto, como a Dra. Raquel Del Monde, que afirma sem deixar margem a dúvidas: “Não temos uma epidemia”.
A médica lembra que o autismo é uma condição complexa, pouco compreendida no passado e que passou por revisões de critérios diagnósticos e que, hoje, é mais reconhecida pelos profissionais que atuam na área. De fato, o melhor entendimento sobre a condição levou à adoção da ideia do “espectro”, abarcando várias situações que não eram entendidas como autismo e levando a que mais pessoas sejam identificadas como autistas.
No final de dezembro do ano passado, recebi uma chamada de um amigo, o Roberto (nome fictício). Ele está se descobrindo autista com quase 60 anos. Tive a oportunidade de acompanhar esse processo que não foi simples. Afinal, para que facilitar se a gente pode complicar, né?
A hipótese de que Roberto fosse autista surgiu quando seus filhos foram diagnosticados. Aliás, é algo muito comum, os pais descobrirem seu autismo após seus filhos, pois compartilham características semelhantes. Uma coisa leva à outra.
De um modo geral, o diagnóstico do autismo é uma maratona, onde a pessoa geralmente passa por vários profissionais de diferentes especialidades. Com ele, não foi diferente, um psicólogo recomendou que fosse consultar um médico para dar seguimento ao processo.
Muitas pessoas falam como se os médicos andassem distribuindo atestados de autismo para qualquer um. Mas, na vida real, as dificuldades são muitas. Com meu amigo, já foi difícil marcar uma consulta. Alguns dos médicos procurados disseram que atendiam somente crianças. Outro, aceitou atender, alertando que nunca havia diagnosticado um adulto e ele não seria o primeiro caso.
Após várias tentativas, meu amigo conseguiu ser atendido para ouvir do médico que ele não tinha autismo, mas somente TDAH e que bastava tomar ritalina que tudo ficaria bem. Ainda foi melhor que o segundo profissional, que o atendeu e disse que era tudo bobagem e receitou um rivotril para ele se acalmar. Em comum, negaram-se a sequer avaliar se Roberto estava no espectro autista.
Questionado por ele, fiz a recomendação de sempre: procure um especialista em autismo e poupe tempo e dinheiro. Como ele já havia passado por uma consulta com uma profissional, resolveu continuar com ela. Essa semana, ele mandou mensagem dizendo que a médica havia confirmado que ele era autista. Não havia dúvida quanto a isso. Porém (e sempre há um porém), ela não via necessidade de formalizar isso em um laudo. Afinal, ele havia vivido bem sem o reconhecimento disso por mais de cinco décadas.
O autismo faz parte da identidade do Roberto, ele é autista, independentemente de ter um médico atestando. Porém, se ele falar que é autista, muito provavelmente, não será levado a sério.
Claro que meu amigo ficou revoltado. A médica ainda disse que um laudo seria prejudicial a ele, que ele poderia ser segregado ou discriminado em seu trabalho. Ele, que havia pensado que finalmente poderia parar de fingir “normalidade”, que já estava cansado de mascarar seu autismo e que iria “sair do armário”, foi mandado de volta para lá. Uma recomendação que não esconde a psicofobia e o capacitismo.
Ouço a sua reclamação e recomendo novamente que vá até um especialista que possua conhecimento clínico sobre o autismo, mas também que entenda o valor de um laudo médico, que há um investimento emocional e financeiro envolvido nessa busca que irá trazer autoconhecimento mas também irá possibilitar e justificar o exercício de muitos direitos.
E não estou falando apenas do trabalho dele: um atestado médico é o que definirá se ele poderá, ou não, comprar um carro mais barato pela isenção de impostos, se poderá exigir, ou não, atendimento preferencial em uma loja ou no cinema com seus filhos ou se vai usar a fila preferencial de embarque no aeroporto.
Não tenho dúvida que cabe unicamente ao Roberto a decisão de tornar pública ou não sua condição de autista. Um direito pessoal e intransferível. Porém, a médica que o atendeu não entende assim. Fala, mas não assina, que nem aquele presidente que fumou, mas não tragou. Ela decidiu que meu amigo não poderá exercer seus direitos e condena-o a continuar sua peregrinação por outros consultórios.
Nessa primeira semana de 2024, recebo mensagem dele, contente, pois a psiquiatra que está lhe atendendo “concordou” em emitir um atestado de autismo. No laudo da médica, há uma série de considerações falando de problemas que podem ser tratados de outra forma no local onde trabalha, relacionados ao gerenciamento de tarefas e à sua atenção.
Meu amigo não consegue realizar múltiplas tarefas, mesmo de forma sequencial, o que tem lhe causado dificuldades em seu trabalho. Dá conta do que lhe é pedido, mas só consegue manter-se focado em uma tarefa de cada vez, até concluí-la. Isso tem prejudicado sua avaliação profissional pela não compreensão destas características. Um atestado médico mostra que isso não é um capricho ou “mimimi” dele, que são dificuldades reais e que podem ser resolvidas com medidas simples.
Agora, está cheio de planos e projetos, pensando nas mudanças profissionais e em seu cotidiano. Não é nenhuma extravagância, são pequenas mudanças que podem fazer seu dia a dia melhor. É direito dele.
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