O livro, desde o início, valoriza a família, os descendentes, os ascendentes, os irmãos e autores marcantes que falaram sobre o tema. “A síndrome do espectro antissemita” precisa ser lido por todos. Meu amigo Nelson Asnis acertou na mosca.
Volto a esse tema porque, na semana passada, escrevi sobre o lançamento sem ainda ter lido o livro. Agora li e, como já imaginava, por conhecer o autor e sua lucidez, adorei.
Nelson dá voz aos filhos, e isso é lindo. O editor, o Zizo, é seu próprio irmão. Na contracapa, o Zizo brinca que o fato de ter editado o livro do irmão é “nepotismo”. Claro, uma brincadeira. Em primeiro lugar porque nepotismo é algo censurável no serviço público. Além disso, nada mais natural que nos unamos e gritemos bem alto sobre o sofrimento emocional que o antissemitismo nos provoca, algo que tem me ocupado insistentemente (e conscientemente) neste espaço.
E devo admitir que faço parte desse “nepotismo” a que se refere o Zizo. A forte amizade que me liga ao autor e ao editor é a cara do judaísmo. Herdamos dos nossos saudosos e lindos pais.
Aqui é tudo papo reto e sem agendas ocultas, pessoal!
Lá pelas tantas, Nelson lembra algo o que considero essencial. Martin Luther King, companheiro de lutas dos judeus, previa que a faceta futura do antissemitismo seria o antissionismo.
E assim é.
E é algo tão forte, que atrai o suposto humanismo de uma esquerda desnorteada a ponto de defender o terrorismo expressamente genocida do extremismo islâmico.
Diz o livro na página 28: “O Hamas buscou com o horrendo atentado terrorista (o pogrom devastador do 7/10) que a inevitável contraofensiva de Israel destruísse Gaza. Jessica Stern em seu livro Terror em nome de Deus (2004) demonstra que os próprios líderes do Hamas reconhecem que pobreza e desesperança aumentam o apoio para a sua causa. Ao entrevistar o xeique Younis-al-Astal, um dos líderes do Hamas, a autora obteve a seguinte afirmativa: ‘Dificuldades sempre trazem pessoas para Deus. O islã nos diferencia porque prepara as pessoas para morrerem por Alá’. Com base nisso, Stern assinala que desesperança , desemprego, pobreza, privação, inveja e humilhação fazem com que a glorificação da morte e o paraíso das virgens pareça muito atraente e que o ódio brutal a Israel (e, como não poderia deixar de ser, aos judeus) seja o combustível para que o extremismo fundamentalista tente se manter no poder.” Claro está que a referência é ao extremismo. E também evidente está que só a cegueira do ódio impede que as pessoas enxerguem mecanismo tão claramente trágico.
E a conclusão está no próprio livro: “O Hamas é um movimento terrorista que não somente prega a destruição do Estado de Israel, como também possui ideologia antissemita. Jorge Zaverucha no livro Armadilha em Gaza (2010) assinala que o Hamas determina no capítulo 1 de seu estatuto que ‘a hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o.’ Qualquer semelhança com o que vimos no massacre da festa rave não é mera coincidência (…). Um ambiente de amorosidade e a cultura civilizatória como importantes mitigadores de nossas tendências destrutivas estão absolutamente ausentes, como demonstra a barbárie perpetrada pelos monstruosos terroristas do Hamas que, como bons aprendizes do ISIS, não só matam como decapitam, estupram, sequestram, incineram… condutas, do ponto de vista psicanalítico, próprias da livre expressão da pulsão de morte completamente desintrincada da pulsão de vida.”
Livraço, hein?
O livro segue contando como os candidatos a terroristas são cooptados, expostos que são ao ódio e ao discurso assassino assentado em narrativas perversas anticivilizatórias. O ódio, segundo Nelson, é “fermento essencial para a existência do Hamas e dos grupos terroristas fundamentalistas”.
“Sob influência de Captagon, um estimulante sintético anfetamínico traficado através da Turquia, essas pílulas, recuperadas dos bolsos de muitos terroristas mortos em solo israelense, conhecidas como ‘cocaína para os pobres’, propiciaram aos terroristas cometerem atos hediondos com uma sensação de calma e indiferença, ao mesmo tempo, mantendo-os altamente alertas por longos períodos, possibilitando que exercessem sua perversão assassina por mais tempo e, por conseguinte, com um maior número de vítimas e de requintes de crueldade, diz outro revelador trecho do livro. “Gaza, em particular, tornou-se um mercado popular para a droga, especialmente entre os jovens viciados, e o Hamas, mais uma vez, na contramão do Alcorão, permitiu e estimulou o seu uso.”
Nelson é autor de outras obras que desvendam a mente do terrorista fundamentalista. Conta que essas pessoas sofrem de um “distúrbio grave”, que ele denomina de “surdez tanática” (“a mente do fundamentalista está danificada de tal forma que impede por completo a entrada de ‘sons’ que não digam respeito às suas crenças mortíferas”, explica o autor logo adiante).
A pulsão da morte toma proporções devastadoras.
Ruptura na comunicação
É assustadoramente grave a conclusão: “O fundamentalista estabelece uma ruptura completa da comunicação, suas capacidades de reflexão estão inviabilizadas, culminando assim com a mais absoluta impossibilidade do diálogo.”
Os caras se tornam bestas que aguardam “a missão para invadir Israel e chacinar o maior número de civis, de preferência com requintas de crueldade, para que Israel, em sua inevitável contraofensiva, destrua Gaza e mate inocentes palestinos (junto com os reféns sequestrados) colocados barbaramente como escudos humanos para fomentar a continuidade do ódio”.
É impressionante a semelhança com os soldados nazistas que consumiam anfetamina na segunda guerra, como relata o livro High Hitler, de Norman Ohler. Li esse livro anos atrás e o emprestei ao Nelson, por saber do seu interesse no assunto.
Aliás, não é só essa a semelhança entre jihadistas e nazistas. São várias e monstruosas, incluindo o ódio ao judeu e as relações nada sutis, reveladas em imagens históricas, do mufti Amin al-Husayni com o próprio Adolf Hitler. Belzebu e Coisa ruim.
Tánatos desintrincado
Diz Nelson que o Tánatos perigosamente desintrincado do Eros provoca “um estado delirante e psicopático de uma realidade paralela na qual os seus hediondos crimes passam a ser não só plenamente justificados como também enaltecidos”.
Para mim, isso tem nome: é a desumanização.
Na continuação, o livro recupera depoimentos que o autor colheu para sua tese de doutorado (“Suicídio fundamentalista, um olhar psicanalítico”), que virou livro e que eu tive a honra de prefaciar. Os relatos dos extremistas são estarrecedores, e há também os dos “tradicionais” (muçulmanos não fundamentalistas), que definem o extremismo como doença.
Na página 36 do seu esclarecedor livro, Nelson passa a debulhar outro conceito que criou (e que dá título ao livro): “Síndrome do espectro antissemita (SEA)”. E isso tem a ver com as reações ao ato bárbaro, devastador, cruel e inadmissível do 7/10.
O livro classifica três tipos de antissemitas: o de caráter estrutural, o desinformado e o psicótico. O de caráter estrutural pode ser identificado em algumas atitudes, que vimos muito perto de nós: comemorar o atentado, não concordar com a adjetivação de terroristas para os assassinos do Hamas, chamar Israel de Estado genocida (ao invés do Hamas, que é explícita e literalmente genocida), protestar a favor do Estado palestino sem mencionar a monstruosidade do Hamas, ser a favor do Estado palestino com a supressão de Israel (o implicitamente genocida slogan “Palestina do rio ao mar”), por exemplo.
“Se você apoia a justa causa palestina, mas também o Hamas ou se omite em relação à barbárie por ele perpetrada ou ainda está enquadrado em um ou mais dos cenários acima citados, preste atenção, você faz parte da SEA tipo 1 e necessita tratamento psicanalítico urgente”, diz o autor, que vê a SEA do tipo 2 como a de mais fácil tratamento (pela informação) e a de tipo 3, retratada pelo grupo ultraortodoxo judaico neturei karta, é o que propõe a destruição de Israel pelo singelo motivo de que, sim, Israel deve existir, mas só quando vier o Messias (e os ignorantes adoram usar essa seita como “judeus antissionistas”).
O livro traz o oportuno alerta: “A SEA vem causando enorme preocupação em função do seu altíssimo percentual de incidência. É preciso combatê-la com muita intensidade e vigor para que novos 7 de outubros não voltem a ocorrer.”
Creio que o próprio livro já se encarregue disso.
Dissonância Cognitiva Desumanizante
É importante, a seguir, a abordagem do DCD. O que é DCD? É a Dissonância Cognitiva Desumanizante, um “mecanismo da mente que faz com que fatos da realidade não consigam modificar ideologias e crenças extremamente arraigadas das quais, por diferentes razões, a pessoa não se desfaz. Desmentindo a realidade objetiva, a crença (ainda que totalmente equivocada) é preservada”. Como jornalista que há anos constatei que minha profissão, muito mais que informar, deve combater as desinformações e os mitos, vejo muito disso por aí. Nelson se atém ao assunto do livro. “Um clássico exemplo é o fato de que existem evidências históricas escritas, atestadas por importantes arqueólogos e historiadores, que apontam com muita certeza serem os judeus o povo ancestral mais antigo da Palestina. No entanto, muitos insistem com a crença de que os judeus são colonizadores e que esta terra (Israel), imagine, não lhes pertence”. A partir dessa constatação límpida, Nelson aborda os fascinantes conhecimentos que adquiriu em viagens mundo afora, lembra que os terroristas no dia 7/10 exibiam a morte de judeus como um feito e, por fim, engata uma inquietante questão: “Como tantas pessoas, inclusive intelectuais e políticos comprometidos com causas humanitárias, como a luta contra o feminicídio, a homofobia, a misoginia e o racismo, podem apoiar um grupo terrorista cujas atitudes e pregações vão exatamente na contramão dessas bandeiras de luta?”
Lá pelas tantas, Nelson faz uma frase muito inquietante, em caixa alta: “O Hamas, ao assassinar a sangue frio mais de mil judeus, está coerente com seu estatuto, colorando em prática A REEDIÇÃO NAZISTA DA ‘SOLUÇÃO FINAL’”.
Perturbador!
E é inescapável concluir que quem justifica o Hamas está acolhendo a barbárie nazista com outro nome. Você já parou para pensar que estamos vivendo em tempo real a construção das bases que cimentaram o nazismo nos anos 1930?
Repito: perturbador! Muito perturbador!
O livro, a partir do capítulo 4, discorre sobre o Hamas e faz um necessário ponto-a-ponto sobre o conflito.
Trata-se de importante peça de esclarecimentos para quem integra a SEA do tipo 2. Um serviço e tanto!
A morte como sentido da vida
A conclusão do autor é aterradora: a morte dá sentido à vida dos fundamentalistas islâmicos. E o livro ilustra como isso é inculcado nos cérebros das crianças desde cedo, nas madrassas (escolas) e nos jornais, com suas caricaturas de judeus.
Quando o livro trata de percorrer os caminhos das viagens do autor (que também escreveu a obra “Do divã ao aeroporto”, em 2016), resulta obrigatória a reflexão sobre a permissividade ou no mínimo a pouca importância com que países, incluindo muito em especial o Brasil, tratam a questão da falta de direitos civis no Irã dos aiatolás, contumazes defensores da destruição de Israel e inacreditáveis negadores do Holocausto. O uso da palavra “tanática” chama a atenção, porque seu contraponto seria “erótica”, e esse paralelo diz muito sobre o respeito à vida.
O enriquecimento do urânio pelo Irã é uma permanente preocupação para Israel. “O risco de um Irã nuclear faz com que definitivamente Israel esteja sob ameaça existencial. O trauma de uma nova ‘solução final’ permeia a mente de todos os que vivem em Israel. Não sem razão”, diz o livro, repletos de fotos reveladores, num exercício exemplar de reportagem.
E segue a lúcida obra de Nelson, trazendo vários elementos que perfazem o emocional. A crítica contundente ao fundamentalismo religioso não poupa, evidente, o judaico, pois, como ressalva o autor, o delírio não é exclusivo de uma fé. Numa reflexão sobre a entrada do fundamentalismo com alguma relevância no jogo eleitoral desde 1988 (Israel é parlamentarista, e a maioria das 120 cadeiras na knesset define o premier), ele mostra o quanto isso complica ainda mais a busca de entendimento com outros povos, mas pondera que a democracia israelense põe limites a esse avanço lunático.
E aqui vai um comentário deste colunista: em qual país do mundo a insegurança e a ameaça existencial não representam munição para os grupos oportunistas de extrema direita?
Nelson desidrata as frágeis e em si mesmo violentamente antissemitas acusações de “genocídio” e “apartheid” a um país que defende sua integralidade sem o objetivo de dizimar um grupo humano e respeita as minorias que vivem em seu solo.
“Não há ônibus segregados para diferentes grupos étnicos, como judeus e árabes. Não existe apartheid em Israel, nem mesmo dentro das escolas”, comenta o sul-africano Mosiuoa Lekota, companheiro de cela de Mandela e depois ministro da Defesa do seu país, referindo-se a Israel, em depoimento trazido pelo livro.
E o capítulo 9 termina assim: “Vários intelectuais insistem em dizer que devem poder criticar Israel sem que necessariamente sejam rotulados como antissemitas. Eles, a priori, estão corretos. As questões que se colocam, no entanto, são: por que dois pesos e duas medidas? Por que só críticas a Israel? Por que punir um povo democrático com atos, esses sim tirânicos, de boicote? Por que o silêncio e a omissão em relação a outros governos que praticam atos tirânicos, misóginos, homofóbicos e até mesmo genocidas?”. É uma questão e tanto. E vem a resposta certeira: “Síndrome do espectro antissemita (SEA)”.
Como entender?!
Na página 106, o autor pontua uma reflexão necessária sobre o nazismo, que sempre me perturbou e me parecia de compreensão inalcançável. “Como entender que muitos líderes antissemitas alemães eram intelectuais, professores, jornalistas, médicos…” Essa questão volta, e, voltando, torna-se palpável, estamos revivendo esse triste fenômeno, em tempo real.
O livro do meu amigo Nelson, editado pelo também amigo Zizo, traz reflexões, viagens, experiências e estudos sobre o antissemitismo em diversos países, da França do “Caso Dreyfus” e do colaboracionismo de Vichy ao próprio Brasil, passando por Alemanha, Argentina, EUA, Polônia, pelas reflexões preciosas de pensadores como Sartre e pelo uso do futebol para a crueldade, sem deixar de falar no triste papel de Roger Waters e na análise de Hanna Arendt sobre Eichmann. Merece leitura ampla, e um dos motivos é a questão acima. Como pôde e… ainda pode!
Essa tácita ação entre amigos, o livro, a edição e a minha própria resenha, são uma amostra do que cabe a nós, judeus: estarmos atentos, firmes e unidos na defesa da nossa identidade.
Tenho feito a minha parte, neste mesmo espaço. Eis:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
>> A necessidade fez deste meu espaço um espaço judaico
>> Por que o antissemitismo é uma espécie de síndrome?
…
Shabat shalom
Serviço: Você encontra o livro “A síndrome do espectro antissemita”, de Nelson Asnis, AQUI.
Foto da Capa: Freepik