As pessoas veem o horror que é a Venezuela de longe e o minimizam, porque parece, lá sei eu, um filme de ficção muito remoto. Assim somos. Requer-se um exercício de empatia para entender as sequelas reais daquela tragédia verdadeira, ou, como eu fiz, ir para lá compreender o que ocorre vendo com os próprios olhos. Fui quatro vezes, uma para cobrir eleição e três para descrever o cotidiano do país. Asseguro: sempre que fui, voltei a Porto Alegre aliviado e sentindo a minha precária cidade como um acolhedor e civilizado “primeiro mundo”.
Ainda bem que Zero Hora não me enviou uma quinta vez (as quatro fui por ZH), porque eu estava decidido a recusar a pauta. Na última vez, uma policial da Guarda Nacional, no aeroporto, ficou eternos segundos olhando meu passaporte, me olhando e decidindo se eu ficaria preso ou seria liberado. Até a imaginei vendo minhas reportagens, cruzando-as com a minha identidade étnica e, eureca!, “este tipo é agente do Mossad”.
Aliás, certa vez eu estava na frente do Palacio de Miraflores (a sede da presidência) e inventei de fazer uma foto. Foram poucos instantes para que três militares pulassem em mim, me agarrassem e exigissem que eu apagasse as imagens, sendo preso caso não os obedecesse. Apaguei… mas as fotos ficaram registradas na lixeira, resgatadas e publicadas. Chupem!
Uma das faces mais tristes daquele desespero é o tráfico de mulheres para países como a Colômbia, o Peru e o México. Ouvi e vi em um documentário, tempos atrás, depoimentos dessas lindas jovens que são vítimas do tráfico. Há algumas argentinas, mas a esmagadora maioria são venezuelanas e só estas citam motivações financeiras.
Invariavelmente, a menina, recém-saída da adolescência, é atraída pela possibilidade de ganhar muito dinheiro em troca de sexo, e esse dinheiro é enviado para a família na Venezuela. Entre se prostituir e ver a família passar fome, nem duvidam.
O tráfico de pessoas em geral e de mulheres em particular tem, desde 2013, até dia de reflexão: 30 de julho. O tráfico humano é uma forma moderna de escravidão. Pode ocorrer mediante ameaça, violência ou miséria sem perspectivas.
E a Venezuela, onde a população vive em estado de altíssima vulnerabilidade, é “terra fértil” para esse crime. Entrevistei uma mãe jovem que via a filha definhar com leucemia. O remédio para a menina existia na Colômbia e no Brasil, a preço muito acessível. Na Venezuela, nem existia. Ora… Touché!
Pra salvar um filho, eu também faria qualquer coisa.
Há estudos que mostram que 87% das vítimas para fins sexuais são mulheres adultas, 11% são meninas e apenas 2% são homens (adultos e crianças). Ou seja, o tráfico de pessoas para a prostituição costuma ter gênero bem definido.
De acordo com o Índice Global de Escravização, em 2021 havia pelo menos 50 milhões de pessoas escravizadas no mundo (sim, estamos no século 21), o que representa um aumento de 10 milhões em relação a 2016. E é estarrecedor: de cada mil venezuelanos, 9,5 estão nessa condição. A Venezuela é o líder latino-americano nesse ranking macabro, e as meninas são, através de golpes ou, muitas vezes, com a anuência das próprias, imbuídas de se sacrificar para a família parar de passar fome.
De acordo com a ONG Mulier Venezuela, que estuda o tráfico de mulheres venezuelanas na América Latina, em 2021, 415 venezuelanas foram resgatadas dos traficantes. Em 2022 (números mais recentes), 1.390 venezuelanas foram resgatadas dessas redes. Desse total, 294 eram crianças e adolescentes.
Vale sempre lembrar que, nos últimos 10 anos, mais de 7 milhões de venezuelanos emigraram. Muitos estão por aqui, trabalhando em farmácias, pets e postos de gasolina. Essas pessoas fogem do inferno. Naturalmente, algumas encontram no comércio do sexo uma solução para a família que ficou. É um sacrifício! E você já pensou nesse número? São dois Uruguais.
Entidades internacionais têm manifestado preocupação com a falta de medidas por parte do governo venezuelano. Nada a estranhar. Um presidente que governa fraudando eleições, sufocando a oposição, prendendo críticos e chamando seus apoiadores de “patriotas” (ou seja, antidemocrático e totalitário), que fala com um passarinho dizendo que o bicho é médium e incorpora o Hugo Chávez assim como um companheiro seu atribui aos hormônios do frango o “homossexualismo” (sic), não se preocuparia com esses “mimimis” das questões de gênero. Tudo muito coerente.
E tem quem apoie essas e outras monstruosidades sob o argumento de que haveria algum fundamento “humanista”, “progressista” ou de “combate ao imperialismo”!
As ONGs têm constatado que o tráfico de mulheres aumenta dramaticamente, cada vez mais é de iniciativa da própria vítima (para tirar a família da miséria), muitas vezes os próprios pais enviam a filha, ocorre de forma sistemática no centro do país (antes era predominante na fronteira), tem virado “solução de vida”, conta com a aquiescência e a participação ativa de autoridades corruptas e, pasmem, as vítimas buscam novas vítimas (no início de março, no Peru, foram encontradas quatro adolescentes sendo traficada por outra vítima adolescente).
Tenho pensado muito no peso da polarização. Com a internet, isso piorou ainda mais, porque antes você pensava e agora escreve. O cara expõe algum pensamento de merda, empunha uma bandeira ou faz parte de uma tribo que convém não contrariar (“por tão pouco”). O resultado é o suposto humanista defendendo trogloditas bolivarianos ou jihadistas assassinos, feminista justificando estuprador e esquerdista aliado ao que existe de mais extremado e obscurantista na direita.
Não faz sentido e é muito perigoso.
Mas, enfim, continuemos no bom embate.
Sempre com coerência, pelo humanismo e pela vida.
Shabat shalom!
Foto da Capa: Marcelo Mora/Amazônia Real
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