Pode parecer paradoxal, mas é a pura verdade. Vivemos em um momento de expansão e de explosão da escrita, algo facilitado pelas contínuas mudanças tecnológicas testemunhadas nos últimos trinta anos. Ao mesmo tempo, nunca tivemos a atenção tão dispersa e lemos cada vez menos. Sendo alguém que acompanhou de perto parte dos efeitos dessa mudança de cenário, tenho minhas elucubrações desordenadas sobre que tipo de desafio esse quadro representa. E achei que hoje era um dia tão bom quanto qualquer outro para especular sobre três problemas com os quais teremos de nos haver pelos anos adiante.
Claro, alguns poderiam dizer que parece fútil esse tipo de inquietação num momento em que a própria noção de “futuro” parece abalada por sordidezes e catástrofes mil, das naturais às eleitorais, mas este é o meu campo de atuação e entendimento. Eu não sei mais do que a maioria sobre a Amazônia, sobre o Cerrado, sobre o Pantanal e sobre o que diabos está provocando os incêndios que queimaram boa parte do Brasil este mês. Aliás, se eu não sei muito sobre isso, também posso pôr a culpa na imprensa como um todo, já que meus colegas nas grandes redações parecem entregues hoje a uma postura reativa que se contenta em relatar, simplesmente, os fogos e suas consequência e em momento algum avançaram sequer além da ideia de que o fogo começou por inspiração divina ou manobra do acaso. O jornalismo investigativo já foi melhor ou é essa também uma ilusão corporativa com a qual os membros da minha desprestigiada guilda conseguem aguentar um dia de cada vez? Não sei, mas eu sei um pouco sobre o tema do qual estou falando aqui. Espero que isto baste, por hoje.
1 – Para quem se escreve numa época de atenção flutuante?
Esse tópico em específico eu já abordei com mais vagar e método no meu primeiro texto publicado na Sler, mais de cem colunas atrás (aqui). O mundo contemporâneo é repleto de mais estímulos a que qualquer geração humana já esteve exposta, o que tem um efeito prático e por vezes doloroso na própria plasticidade física do cérebro.
Há também que considerar o fato de que mesmo nossa atenção se tornou uma commodity a ser explorada pela indústria da tecnologia avançada – redes sociais que alimentam seu público apenas com a manchete de uma notícia e que tentam a todo custo impedir que o usuário use aquele link para sair da rede. O próprio Google, onde antes muitos buscavam manuais básicos para dúvidas do cotidiano, de como tirar manchas até montar uma bomba caseira, hoje retorna, antes de qualquer página escrita, vídeos do YouTube, outra das plataformas pertencentes à mesma empresa, claro.
No texto que eu linkei alguns parágrafos atrás, eu mencionava duas pesquisas diferentes, uma feita nos anos 2010 por uma empresa varejista de material para escritório, e outra realizada nos anos 1960, ambas com o mesmo foco: a estimativa de quantas palavras por minuto o americano médio conseguia ler. A pesquisa dos anos 1960 mensurou uma média de 400 palavras por minuto. Meio século depois, o resultado foi de 300. E a pesquisa só mede velocidade de leitura, não índices de compreensão. O que nos leva à questão essencial: para quem se escreve quando há uma pandemia generalizada de falta de atenção? E que efeito isso terá na literatura, entre as artes uma das menos passíveis de funcionar no modo “segunda tela” tão caro à contemporaneidade?
2 – O atual panorama da economia de atenção já se estende sobre a própria estrutura em forma de muitas obras
Já faz alguns anos que constato o resultado dessa pandemia de desatenção dispersa modificando os livros até mesmo em questões estruturais. Não falo aqui apenas de livros de ficção cuja organização hoje é fraturada em capítulos curtos, embora essa seja uma questão a ser pensada. Falo do próprio fato de que muitos livros voltados para o consumo de massa hoje lançam mão de estratégias as mais desesperadas para vencer a grande maré amorfa da desatenção. Livros de autoajuda que abusam na capa de palavrões para traduzir seus conceitos vazios. Obras que mais parecem livros-texto do ensino médio, com resumos do que se leu nos parágrafos anteriores em um “quadro sumário” no fim de cada capítulo.
São características de um tipo de livro que, embora tenha pouco prestígio crítico ou intelectual, tem grande aceitação pelo público (não teríamos ondas sucessivas de obras de autoajuda a cada década se não fosse assim). Mas a própria ficção, mesmo aquela mais exigente, já parece lotada de exemplos de obras pensadas a partir da ideia de que ninguém mais lê.
Num famoso decálogo sobre “como escrever bem”, o grande Elmore Leonard escreveu, como regra número 10, o conselho: “Tente deixar de fora do seu livro aquelas partes que os leitores pulam”. Leonard foi um autor que elevou a forma de um gênero repetitivo e formulaico por natureza, o do romance policial, o que talvez seja a razão de sua dica que pode ser traduzida também como “deixe de enrolação”. O que talvez o próprio Leonard não esperasse quando escreveu esse texto era a lenta deterioração da atenção geral, chegando ao ponto de hoje não termos mais certeza de o quanto “o pessoal pula” em um livro.
Um exemplo: Felipe Neto, o YouTuber que às vezes compra algumas brigas com as quais concordo 100%, é uma das personalidades mais famosas da internet brasileira. É, no entanto, um alienado que parece se satisfazer com a própria preguiça intelectual. Não o conheço pessoalmente, mas concluí isso de suas reiteradas e cansativas declarações contrárias à leitura de Machado de Assis no Ensino Médio. Eu já tinha tomado conhecimento de algo assim dito por ele há alguns anos, mas as coisas mudam, o rapaz amadureceu, agora fundou seu próprio clube do livro, então vá lá, dê-se o benefício da dúvida. Até porque acho muito bom que ele tenha indicado Corpos Secos como o seu livro deste ano, tenho amigos entre os autores. Só que aí, lá está de novo a implicância felipenética com Machado, meio gratuita como sempre.
Machado de Assis, hoje um clássico justamente pela forma mais solta e menos empolada com que escrevia em seu tempo, conseguia imprimir riqueza a sua prosa usando um vocabulário pouco extenso se comparado a alguns de seus contemporâneos, como Coelho Neto ou Euclides da Cunha. Em um Brasil em que o conceito de “belas letras” caía facilmente no “beletrismo”, Machado fazia sua frase brilhar sem muitos torneios – esta foi uma crítica constante a seu trabalho durante sua vida, por exemplo. Apenas para que uns cem anos depois estejamos tão mal de cabeça que uma das personalidades mais famosas da internet acha Machado chato e “inapropriado para jovens de 13 anos”. É uma discussão que permanece aberta, e nem todos os livros de Machado talvez ressoem nessa idade, mas achar que parte de seus contos ou que um dos livros mais engraçados da literatura brasileira, O alienista, “não é para adolescentes” me parece uma visão muito estreita.
Por outro lado, pelos motivos já elencados, talvez para alguém que cresceu vendo filme de tiro e explosão e dando tiro em cabeça de zumbi em jogo de videogame seja mesmo. Então que prognóstico terá a literatura? Virar uma espécie de seita hermética trocando pergaminhos em meio às ruínas? Enquanto do lado de fora, James Patterson conta a fortuna acumulada com romances repetitivos com capítulos de três páginas? Aliás, já que falei de dinheiro:
3 – Que tipo de retorno um autor e uma editora podem obter quando o copyright está em vias de extinção?
Antes mesmo de termos a ameaça no horizonte de empresas de inteligência artificial utilizando obras de terceiros para treinar seus “robôs artistas”, a internet já havia criado várias linhas complexas de discussão sobre o futuro do copyright. A discussão sobre o “copyleft“, na verdade, já é algo antiga, remontando a anos anteriores à popularização da rede como a conhecemos hoje (a primeira menção reconhecida ao termo data dos anos 1980, justamente no campo da programação cibernética). Copyleft seria uma das maneiras possíveis de garantir que um trabalho intelectual esteja aberto a reinterpretação, diálogo, paródia, que possa ser a ponte para outros trabalhos sem que se tenha de lidar com as restritivas normas da propriedade intelectual protegida (que praticamente engessou muitos criadores de conteúdo em sites como o YouTube, por exemplo).
Outra dessas licenças idealistas seriam a Creative Commons, pela qual um artista abre mão de alguns direitos sobre como a obra será reproduzida e retrabalhada mas, e esta parte é importante, mantém o direito ao crédito – algo que bagunçou completamente na era das redes em que todo mundo conta as mesmas piadas e copia os mesmos vídeos.
A questão de quanto um autor lucra com o direito autoral de seus livros é complexa, principalmente em um país como o Brasil, em que as edições se tornaram cada vez mais restritas e tiragens grandes e reedições são para poucos. Um autor de livro ganha em média 10% do preço de capa. O que significa que para cada exemplar daquele livro que está custando o exorbitante preço de R$ 75, o escritor vai ficar com R$ 7,5 (tudo depende sempre da editora com que se trabalha, também). Há editoras que pagam mais dependendo do quanto o autor é uma “aposta certa”. Há outras que tentam reduzir a parcela a uns 5% ou 6%.
Nesse contexto, há todo um discurso contrário à pirataria em sites de compartilhamento de livros (volta e meia a Polícia Federal fecha algum com algum estardalhaço). Para escritores que criticam a pirataria, a questão parece clara: é contra a lei e priva o autor de receber por seu trabalho. Para quem está no campo ideológico oposto, isso apenas impede a circulação do conhecimento Para mim, a questão me parece menos clara. Sim, a pirataria é um problema que tem razões sistêmicas. Qualquer livro hoje já sai do caminhão da editora custando mais de R$ 50. Façam o teste olhando qualquer livraria, real ou virtual. No mesmo país em que o salário-mínimo é de R$ 1.412,00 – o equivalente a R$ 47,07 pago ao trabalhador por dia de trabalho. Logo, a ideia de “democratizar o livro” tão falada sempre é uma quimera, e os resultados são previsíveis: elitização do mercado consumidor por um lado e aumento da pirataria por outro.
Ao mesmo tempo, se tem uma coisa que me irrita um pouco é o discurso do outro lado, que desdenha do direito autoral como parte de sua cruzada pelo “compartilhamento irrestrito de conhecimento”. Sabe quem defende também esse discurso? A gigantesca Google, digitalizando bibliotecas públicas e cobrando pelo acervo virtual. O cara que brada contra o direito autoral para “fazer a obra circular” transforma, no fim das contas, arte e trabalho intelectual em um hobby de alguém que tem como ganhar a vida fazendo outra coisa. É uma outra faceta da precarização do trabalho.
E como esse ponto poderia ser repensado? Bom, uma das soluções já existe e está em prática há algum tempo: o financiamento coletivo de uma obra, paga adiantada por um público que quer que ela exista. É comum na música, nos quadrinhos, já chegou aos livros. Nem sempre, contudo, o financiamento direto do público é uma garantia de receita constante – a prova é que de três em três meses a própria Wikipedia sobe aqueles anúncios passando o chapéu porque não conseguem manter seus custos operacionais. Veículos de imprensa alternativa também costumam mandar três e-mails por dia: um pedindo dinheiro, um com a newsletter das notícias que publicam, outro lembrando do primeiro e-mail.
É um sistema inseguro e não sei se estar conformado com um sistema que transforma todo mundo em passador de chapéu é a melhor alternativa. Mas por enquanto, é a que se tem.
Foto da Capa: Freepik
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