É compreensível o motivo pelo qual a atriz britânica Kate Winslet batalhou com tanta dedicação, por longos oito anos, até a viabilização e a concretização de um sonho: a cinebiografia de Elizabeth “Lee” Miller (1907-1977), a fotógrafa de guerra americana que foi muitas coisas na vida, mas sobretudo uma grande mulher, muito adiante do seu tempo, e testemunha de sensibilidade singular da barbárie do Holocausto.
O filme “Lee” foi lançado no Reino Unido em setembro do ano passado e recentemente entrou no cardápio do Prime. É protagonizado pela própria Kate Winslet.
Lee também foi top model de revistas como Vogue, Harper’s Bazaar e Vanity Fair.
Mas tinha um talento especial e marcou época como fotógrafa surrealista que se tornou valente jornalista enviada para cobrir a Segunda Guerra, documentando as atrocidades que foi descobrindo por conta própria.
Lee Miller era americana de Poughkeepsie, pequena cidade industrial a 145 km de Nova York.
Seu pai, Theodore, era engenheiro, inventor e fotógrafo amador. Incentivou decisivamente Lee a ser fotógrafa ao lhe comprar, quando ela tinha 10 anos, uma Kodak Box Brownie.
Lee era uma jovem de espírito livre, que se cansou da vida pacata em Poughkeepsie. Em 1925, com 18 anos, fez uma viagem de estudos para Paris, onde a vida cultural era vibrante, o ambiente era de permanente festa.
De volta a Nova York em 1926, conheceu o fundador da revista Vogue, Condé Nast (1873-1942).
Nast ficou tão fascinado com a beleza e a sofisticação de Miller que a convidou para trabalhar como modelo para a revista.
Nos anos 1920 e 1930, Lee Miller trabalhou com alguns dos principais fotógrafos de moda da época. Entrou em contato com o fotógrafo surrealista americano Man Ray (1890-1976), tornando-se sua musa, amante e assistente por três anos. Houve ocasiões em que ela cuidava dos trabalhos de fotografia comercial para os quais Ray era contratado. Assim, ele tinha tempo de se concentrar nos projetos artísticos. E aí temos uma curiosidade desconcertante. Lee, que aprendeu muito nessa época com a prática cotidiana, raramente recebia o crédito pelas publicações de fotografias supostamente do chefe que na verdade eram dela.
O filme tem elementos de muito impacto emocional, sendo um deles surpreendente, que vai se tornando claro à medida que chega o desfecho. E é lindo, mesmo que triste (que vontade de dar spoiler!). Também é bacana a relação de Lee Miller com o colega David Scherman, da revista Life, maravilhosamente interpretado por Andy Samberg, o divertido Jake Peralta de Brooklyn Nine-Nine, só que agora num papel dramático. Tem uma cena em que ele, judeu americano cobrindo o horror na Alemanha, desaba nos braços da amiga ao dizer “é a minha gente” – instante fugaz, mas extremamente tocante.
Voltando a Lee, em 1932 ela retornou a Nova York, onde abriu seu próprio estúdio comercial, chamado Lee Miller Studios Inc, que existiu até 1934, quando se mudou para o Egito para se casar com um rico empresário do país, Aziz Eloui Bey (1890-1976).
Foi um casamento curto.
Em 1937, a sua trajetória começou a tomar a forma que a notabilizou. Conheceu em Paris o pintor surrealista britânico Roland Penrose (1900-1984). Entrou para o círculo de conhecidos dele no sul da França, que incluía Man Ray, o poeta francês Paul Eluard (1895-1952) e o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), que pintou um retrato famoso de Lee Miller.
Então Lee se mudou com Penrose para Londres em setembro de 1939, na mesma época em que o Reino Unido declarava guerra à Alemanha. E, como fotógrafa surrealista, aquela loucura era um prato cheio. Mais: era uma oportunidade fascinante para capturar os aspectos sombrios do ser humano e da sua maldade.
E então, realmente, tudo começou.
Vinte e duas fotografias de Miller de ataques aéreos sobre Londres foram incluídas na publicação do Ministério da Informação britânico “Grim Glory: Pictures of Britain Under Fire” (“Glória sinistra: imagens do Reino Unido sob ataque”).
Lee Millerfoi certificada pelo Exército dos Estados Unidos em 1942 e passou a ser uma das poucas mulheres correspondentes de guerra, viajando com o exército pela Europa, algo muito transgressor (típico dela).
Lee foi a única a fotografar os combates e presenciar a libertação de Saint-Malo, na França, onde os americanos testaram sua nova arma secreta, o napalm. Suas imagens foram publicadas na forma de ensaio fotográfico nas edições britânica e americana da revista Vogue.
A editora da Vogue britânica, Audrey Withers (1905-2001), não queria cobrir apenas moda e beleza. Queria manter seus leitores a par de temas da atualidade e dos problemas sociais. Brigou muito, e o filme retrata esse contexto.
Lee e Withers trabalharam afinadíssimas para transformar a revista de moda e estilo de vida numa publicação que também falasse sobre o que estava acontecendo no mundo, publicando artigos sobre moda ao lado de reportagens e imagens da guerra.
Lee sempre procurava mostrar a verdade nas suas fotografias de guerra. Nas suas imagens da libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau, na Alemanha, em abril de 1945, ela documentou as mais terríveis atrocidades do regime nazista. O filme mostra como ela vai trabalhando e, ao mesmo tempo, chocada, desvendando a maldade crua do nazismo.
Um dia depois de fotografar Dachau, Lee posou para seu mais famoso retrato da época da guerra. Uma imagem incrível! Foi tirada pelo seu grande amigo e colega de profissão, o fotógrafo David Scherman (1916-1997), da revista Life, aquele citado acima, interpretado por Andy Samberg.
O retrato mostra Lee Miller se lavando na banheira do apartamento de Adolf Hitler em Munique, na Alemanha. Sua aparência é cansada, mas bela, com suas botas embarradas no chão e uma fotografia do Führer apoiada na borda da banheira. No mesmo dia, Hitler se suicidava.
Depois da guerra, em 1947, Lee ficou grávida do seu único filho, Antony Penrose, e esse filho faz parte de um tocante momento do filme, que é baseado no seu livro sobre a mãe. “Tony”, filho de Lee e Roland Penrose, escreveu “The Lives of Lee Miller” (“As vidas de Lee Miller”), que subsidiou o lindo trabalho de Winslet.
Lee, Roland e Tony se mudaram de Londres para Farley Farm, na zona rural de East Sussex, no sudeste da Inglaterra, em 1949. Lá, Lee voltou sua atenção para o cenário doméstico, passando a ser uma reconhecida cozinheira e anfitriã.
Seu filho pouco sabia do que ela tinha vivido. As visões que ela presenciou durante a guerra a assombraram pelo resto da vida. Lee foi vítima de severa depressão e se tornou dependente do álcool. Morreu em 1977 como uma dedicada dona de casa, cuja trepidante vida merece ser conhecida e reverenciada.
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Shabat shalom!
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Foto da Capa: Divulgação.