Pode parecer estranho, mas eu me sentiria muito mais cômodo se produzisse colunas diárias. Por que, se isso implica muito mais trabalho e a necessidade de ter ideias diariamente? Porque trabalho não me assusta quando faço o que gosto e porque os assuntos são tão voláteis que se diluem de um dia para o outro – logo, me encantaria a ideia de escrever diariamente. Na semana que passou, pensei em alguns temas. Cheguei a começar um diálogo fictício entre Messi e Suárez, refleti sobre a solidão de fazer jornalismo se posicionando, pensei nas camadas de exclusão de que fala a Djamila Ribeiro, ensaiei um texto sobre a incrível fotografia do Cristiano Zanin sendo aprovado para o STF enquanto Sérgio Moro passava ao fundo. Ideias, ideias, que deixam de ter força no dia seguinte.
Mas, justamente porque os temas são voláteis e as notícias são impressionantemente fugazes, optei por algo atemporal. Pra desespero do meu amigo Luiz Fernando Moraes, publisher da Sler, acabei escrevendo quinta à tarde (costumo mandar os textos com antecedência). Mas era texto que eu vinha prometendo fazia algum tempo.
Trata-se das entidades judaicas em Porto Alegre, que merecem ser conhecidas pela “comunidade ampla” (fora do meio judaico). Sou fervoroso defensor de que nada pode ser melhor contra o preconceito do que o conhecimento. Afinal, me parece bastante óbvio dizer que o preconceito é fruto da ignorância. Exemplo disso: o antissemitismo.
Movimentos juvenis
Logo, vamos a elas, começando pelos lindíssimos grupos juvenis, a respeito dos quais, por motivos pessoais, tenho todo um carinho.
Os movimentos juvenis judaicos no Brasil se iniciaram em Porto Alegre por influência da forte comunidade argentina, cuja vizinhança foi determinante no caso específico do Dror, e pela triste bagagem trazida por imigrantes judeus que vieram das perseguições na Europa oriental antes da refundação de Israel. De diferentes formações ideológicas, esses grupos exercem ainda hoje destacada atividade educacional, passando a crianças e adolescentes as bases da ética judaica, a lógica do pertencimento e os pilares do sionismo como essência de um nacionalismo libertário. Os movimentos juvenis são formadores de cidadãos. Têm na essência a visão de Israel como porto seguro para os judeus, mas, paralelamente, os “madrichim” (orientadores) mostram aos seus “chanichim” (as crianças) a importância de serem conscientes de suas condições cidadã e judaica. São estimulados valores como amizade e honestidade. Mostra-se o que é uma minoria. Jovens ensinam jovens.
É o que se convencionou chamar de “educação não formal”.
Mesmo os movimentos mais antigos tiveram hiatos de inatividade, coincidentemente durante o Estado Novo getulista (1937/1945) e a ditadura militar (1964/1985), regimes de cunho autoritário, com características emprestadas pelo fascismo.
Foi histórico o advento do movimento juvenil sionista-socialista Dror, criado por jovens judeus que participaram de encontro em Buenos Aires e tiveram intensa influência dos líderes argentinos. Era 5 de outubro de 1945, meses após o fim da Segunda Guerra Mundial e sob o sentimento de urgência para a independência de Israel. Evento marcante foi a presença em Porto Alegre, em 1946, do professor Isaac Haizman (que, sob patrocínio do Dror, falou sobre a continuidade do povo judeu no seu lar). Desse momento em diante, os participantes iam se multiplicando, atingindo as centenas e chegando a São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Em maio de 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra, seminário da Lapa, em São Paulo, tornou-se marcante. Na década de 1960, o Dror passou a existir também em Recife e Salvador. Em 1981, houve a fusão dos já próximos movimentos Dror e Ichud Habonim, como era então conhecido em Porto Alegre. Para quem viveu a juventude judaica até o início dos anos 1980, era usual chamar o movimento de “Ichud”. A metamorfose de nomes ocorreu assim: o grupo foi fundado na capital gaúcha como Dror, mas passou a ser Ichud Habonim. Tinha paralelamente o paulistano chamado Dror, e ambos eram autônomos. De qualquer forma, havia afinidades essenciais entre movimentos de mesma linha ideológica sionista e socialista, com pequenas variações.
O Dror, sob qualquer nominação que tenha adotado, constitui-se de cláusulas pétreas: a importância de participar da criação do Estado judaico, educar as novas gerações, defender a legitimidade de Israel e, nesse lar nacional judaico, estabelecer um sistema de vida em que todos trabalhem de acordo com as suas possibilidades e ganhem de acordo com suas necessidades, com justiça social e liberdade.
A base ideológica do Dror se assenta na expressão Tikun Olam (“conserto do mundo”, em hebraico), diante da convicção de que o mundo “está quebrado” e requer a busca da justiça e do igualitarismo.
Os idealizadores do Dror são Aron David Gordon e Dov Ber Borochov.
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Depoimento de Paul Singer: “Havia compreensível euforia entre os judeus de todo o mundo, misturada pela preocupação pelo que poderia resultar da guerra que o novo Estado travava com os vizinhos árabes. O Dror era herdeiro de uma tradição política originada no início do século, a do Poalei Zion (partido sionista marxista). Mas ela tinha sido interrompida brutalmente pela guerra e pelo Holocausto. Naquela altura, estávamos politicamente ligados ao Mapai, o partido (trabalhista) de Ben-Gurion e que governaria Israel nas primeiras décadas da sua existência. Era necessário reformular os princípios sionistas socialistas para a época contemporânea, e metemos a mão na tarefa. Faltava-nos formação, assim passamos a ler furiosamente. Minha passagem pelo Dror foi decisiva em minha vida, posso dizer que sou o que sou em grande parte por aqueles quatro anos, dos 16 aos 20 anos, de 1948 a 1952”.
O jornalista Alberto Dines fala sobre a fundação do Dror no Rio de Janeiro, sempre lembrando suas origens gaúchas no Brasil: “O Dror de Porto Alegre foi fundado com a ajuda dos companheiros argentinos. Aliás, muitas entidades, iniciativas e ações do judaísmo brasileiro nasceram ou foram inspiradas pelo ishuv argentino. Porto Alegre contou sempre com o apoio e a inspiração da fortíssima e antiga comunidade portenha.” E há uma reminiscência curiosa de Dines: “Em 1948, apareceram em minha casa dois jovens do RS: Efraim Bariach e Maurício Kersz. O pai de Bariach, emérito hebraísta, era professor da escola judaica em Porto Alegre e amigo do meu pai. Efraim e sua mãe vieram no mesmo navio em que vieram minha mãe e meu irmão, também Efraim. Os dois hospedaram-se em minha casa por um mês: vieram fundar o Dror no Rio.”
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Em meio a movimentos sionistas socialistas e revisionistas, surgiu um que se diz apartidário: a Chazit Hanoar, cujos pilares estão definidos no seu site: “A Chazit Hanoar é um movimento juvenil judaico, sionista, educativo, apartidário e continental. Somos jovens judeus cujo objetivo principal é transmitir valores judaicos e sionistas a nossos chanichim, de forma divertida e descontraída. Desde cedo, no período em que a criança tende a desenvolver a sua individualidade e seu senso crítico, torna-se indispensável um esforço no sentido de estimular o amadurecimento de uma identidade judaica. O papel da família é essencial na formação do caráter do jovem judeu. Porém, além da orientação recebida em casa, a educação formal dada pela escola e a não formal, dada pela Chazit Hanoar, complementam-se de maneira efetiva.”
A Chazit, que iniciou as atividades na sinagoga Sibra (fundada por judeus alemães em 1936, quando o nazismo mostrava sua feia carranca e provocava um surto imigratório), passou a funcionar no Colégio Israelita Brasileiro (CIB), o que a ajudou a ter a adesão de muitas crianças.
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Fundado já em 1923 por Vladimir “Zeev” Jabotinsky, em Riga (Letônia), o Betar chegou ao Brasil na entrada da terceira década da imigração judaica, antes ainda de a Alemanha se tornar nazista e, também, de a ditadura do Estado Novo proscrever os grupos sionistas. O teor do seu manifesto é a defesa incondicional da Israel bíblica, o que significa a expansão do território em relação à demarcação atual. O movimento guarda com carinho carta do próprio Jabotinsky, escrita à mão em hebraico e enviada para Porto Alegre em 31 de maio de 1931, congratulando-se pela criação da sede na capital gaúcha e agradecendo o convite para estar presente.
Diz a carta, que é uma relíquia:
“Paris, 31/5/1931
Ao Mefaked da sede Betarí
Em Porto Alegre, Brasil
Prezado senhor,
Eu agradeço ao senhor pelo seu convite para a abertura da sede do Betar em Porto Alegre. Transmita minhas bênçãos a todos os membros. Desejo para a sede êxito e triunfo.
Tel Chai!
Zeev Jabotinsky”
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Sobre o ucraniano Jabotinsky, o jornalista e historiador argentino Roberto Bardini o define como “um dos líderes sionistas mais brilhantes e fanáticos da história”, “crítico do socialismo” e, por isso, contraposto aos grupos judaicos de perfil socialista e social-democrata (Hashomer Hatzair e Dror).
É essencial, para entendermos o Betar, contar quem foi o outro inspirador do movimento: Joseph Vladimirovich Trumpeldor, curiosamente sionista com convicções socialistas. Trumpeldor (1880/1920), reverenciado pelo próprio Jabotinsky, foi um dos primeiros ativistas sionistas que ajudaram a levar os imigrantes judeus para Israel. Trumpeldor morreu defendendo o assentamento judaico de Tel Hai em 1920 e posteriormente se tornou um herói nacional sionista. Uma frase sua, ao morrer, é cantada como lema: “Não importa. É bom morrer por nossa terra.” “Betar” é sigla em hebraico que significa “pacto da juventude hebraica com Joseph Trumpeldor”.
Outro orgulho do Betar em Porto Alegre: no bairro Jardim Itu-Sabará, há uma rua Zeev Jabotinsky, que faz esquina com a Rua Menachen Begin. Percebam: há uma esquina betarí em plena Porto Alegre.
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Houve também o movimento tido como mais à esquerda, o Hashomer Hatzair, cujas origens também vêm da década de 1920, a partir de quatro kibutzim já estabelecidos onde hoje é Israel. A visão desse movimento é de busca da igualdade entre árabes e judeus e de convivência pacífica entre os dois povos – nos anos 1920, chegou a apoiar o Estado binacional. Atualmente, o Hashomer defende a solução de dois Estados para dois povos, vista como a única justa e apropriada para ambos.
O inspirador do movimento era Mordechai Anielewicz, líder da lendária resistência judaica contra o exército nazista no Gueto de Varsóvia, em 1943 – o Levante do Gueto de Varsóvia, exemplo universal de luta e perseverança, foi o momento em que os judeus mostraram indignação, irresignação e reação. Anielewicz e seus parceiros simbolizam um sionismo que busca a justiça, mas defende Israel de forma resoluta.
O Hashomer Hatzair chegou ao Brasil na década de 1940, em São Paulo. Expandiu-se para Rio de Janeiro e Florianópolis e teve grupos em Porto Alegre, Brasília, Recife e Manaus. Em Porto Alegre, persistiu até o final dos anos 1960, quando, em meio ao regime militar, realizava suas reuniões nas casas dos madrichim, de forma clandestina.
A referência teórica do Hashomer Hatzair é Ber Borochov, que definia Israel como a solução para os judeus. Seria a “emancipação” e a “autolibertação” judaica. Na sua visão, sionismo e socialismo são movimentos interligados.
Organizações femininas
Na segunda metade da década de 1940, surgiram os grupos femininos. Em 1947, foi a Wizo, que sempre se disse apartidária. Em 1948, foi a Na’amat Pioneiras, cuja origem é ligada ao partido de esquerda Poalei Sion, de feições trabalhistas. A socióloga Anita Brumer, porém, descreve sua forma de atuação da seguinte forma, no livro “100 anos de amor – a imigração judaica no Rio Grande do Sul”: “Embora tenham origens distintas, na forma como atuam na capital do Rio Grande do Sul, elas são bastante semelhantes, tanto em seus objetivos como nas características de seus membros e em suas atividades.” Segue Anita: “A Wizo (Organização Internacional de Mulheres Sionistas) foi fundada em 1920 na Inglaterra e hoje está espalhada por diversos países do mundo. Em 1949, seu executivo mundial transferiu-se para Israel. É um movimento sionista e apartidário – o que significa que apoia o Estado de Israel, mas não assume posições político-partidárias internas daquele país. Seu objetivo principal é ajudar as mulheres em Israel e na diáspora, mas também disseminar a cultura judaica. Em Porto Alegre, a organização nasceu em 1947, com a finalidade de ‘promover a prática da beneficência para o auxílio da criança e da mulher necessitada’ (…)”. Sobre as Pioneiras, Anita diz: “A Na’amat Pioneiras é uma organização assistencial criada em Israel, em 1921, para defender as mulheres trabalhadoras. Desde a sua criação em Porto Alegre, em 1948, mantém vínculos com a Moetzet Hapoalot (Conselho de Mulheres Trabalhadoras), de Israel, que luta pela ampla emancipação de todas as mulheres que trabalham, mantendo diversos centros educacionais e profissionais, escolas noturnas, jardins de infância e creches para os filhos das mães trabalhadoras. A organização local (de Porto Alegre) tem objetivos sociais, culturais e filantrópicos”.
A história da Na’amat Pioneiras remete a Eva, Esther, Sara, Ruth, mas pode ser contada a partir das chalutzot que participaram das três primeiras aliot (migraram para Israel), entre 1886 e 1920. Eram mulheres que acreditavam no sonho do trabalhismo sionista. Suas origens têm profunda marca idealista. Um trecho de Theodor Herzl no 1º Congresso Sionista Mundial, em 1897, é lido por elas quase como lema: “Uma nação que luta para ser reconhecida como igual entre outras nações tem que aceitar as mulheres como iguais entre os homens.” Seu foco é a divisão de responsabilidades, justiça social e igualdade de oportunidades.
B’nai B’rith
Entidade judaica criada em meados do século 19, a B’nai B’rith (Filhos da Aliança) é a mais antiga de todas em termos mundiais. Mais precisamente, sua fundação oficial ocorreu no distante 13 de outubro 1843, por Henry Jones e 11 outras pessoas, em Nova York. A menorá é seu símbolo (os três braços da direita são luz, justiça e paz; três braços da esquerda são dedicados à benevolência, fraternidade e harmonia; e o braço do centro no candelabro significa a verdade). A B’nai B’rith de Porto Alegre foi fundada em 1955, já 112 anos depois da fundação em nível mundial. É uma das entidades de direitos humanos mais longevas do mundo, não só entre as judaicas – em 2043, celebrará dois séculos. Seu objetivo é de congregar judeus provenientes de diferentes localidades.
Seus princípios são “beneficência, fraternidade e harmonia”.
Dedica-se a variados serviços sociais dentro e fora da comunidade judaica, prestando assistência médico-hospitalar a pessoas carentes, campanhas humanitárias em favor de vítimas de guerras e desastres naturais, educação, e combate ao racismo e à discriminação de todas as espécies.
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Este “raio-x” das entidades judaicas deixou de lado as óbvias, como as sinagogas, a Federação Israelita, o Colégio Israelita Brasileiro e o Instituto Marc Chagall (de preservação histórica). Mas, ao pinçar os movimentos juvenis e femininos e citar a B’nai B’rith, creio que seja possível fazer um apanhado da pluralidade e da profundidade desses grupos e talvez apresentar a beleza de uma comunidade pujante e solidária.
Shabat shalom!