Tem um livro que adoro espiar, do meu amigo Eduardo Bueno, o cidadão que outro querido amigo, o Boró (o saudoso Mauro Totalles), apelidou de “Peninha” quando era um atabalhoado repórter na editoria de Esportes. Você se lembra do pato Peninha, da Disney? Eu o adorava. Pois então. Que figura!
Mas o livro é “Dicionário da Independência – 200 anos em 200 verbetes”, lançado, evidentemente, em 2022, ano que marcou os dois séculos da nossa independência. São 200 verbetes deliciosos que nos levam de forma ordenada alfabeticamente, mas desordenada em termos de roteiro. E isso é bem criativo.
Ah, o livro é ilustrado pela também querida Paula Taitelbaum. A Paula é a esposa do Peninha. E peço que não confundam. Não é a Margarida. A Margarida é a esposa do Donald, que nem sei se tem algum parentesco com o Peninha, só com o Zezinho, o Huguinho e o Luizinho. Mas… pensando bem, não devem ser parentes. Se fossem, o Peninha seria também parente do Tio Patinhas e talvez do Gastão. Logo, não seria repórter.
Sacou?
Vamos ao livro.
Lá na página 39, vem a história da dívida. Mas vale pegar o conjunto todo entre as páginas espelhadas 38 e 39.
Começa pelo verbete “Decreto” e fala sobre o decreto assinado pela Dona Leopoldina, a “companheira titular” de saudosa lembrança, em 2 de setembro de 1822. Ou seja, cinco dias antes do grito do Ipiranga, aquele brado cagado (isso é literal e logo adiante você entenderá). “Independência ou morte, porra, porque eu não paro de cagar”, pode ter sido a versão completa, mas ninguém jamais teve a coragem de revelar.
O fato é que setembro é repleto de datas pátrias. Começa no decreto do dia 2 (“É considerado por muitos historiadores como o primeiro decreto da Independência do Brasil”, ensina o Peninha, pra minha alegria, porque Dona Leopoldina era tri).
Mas vamos lá. 2 de setembro; 7 de setembro; 15 de setembro; 20 de setembro… e, a partir do dia seguinte, como dizia o também saudoso Tim Maia, “é primaveraaaa, te amoooo”.
O Peninha, se ler esse texto (vou mandar pra ele no WhatsApp e exigir que o leia!), vai entender o lance do dia 15.
E vai concordar!
Mais: exatamente entre as datas pátrias brasileiras (7) e gaúcha (20), está a mais importante delas. Como mostro no meu livro “Coligay, Tricolor e de todas as cores”, é… de todas as cores.
Dia 15 de setembro deveria ser feriado mundial.
Sem perder o foco, devo dizer que o Ira complementa o Tim ao dizer “que vejo flores em você, ê, ê, ê, ê”…
E dá-lhe, dá-lhe Tricolor!
Foco, Léo. Foco, seu fanático!
Vamos lá.
Depois vem o verbete “Demonão”, que era como Dom Pedro se autointitulava nas cartas que mandava pra “Titila”, a Marquesa de Santos, sua amante. Ou seja, sacaneava a autora do decreto da nossa independência, aquela que eu disse que era tri.
Perdão, mas que baita filho da puta!
Não segurava a bragueta nem pra foder, nem pra cagar.
E aqui vem o próximo verbete: “Diarreia”: “Piriri, caganeira, desarranjo, disenteria… Chame como quiser, o fato é que D. Pedro estava se borrando nas calças quando, na ida para São Paulo, recebeu as cartas de D. Leopoldina e José Bonifácio dando conta das terríveis determinações que as Cortes Constitucionais de Portugal queriam impor ao Brasil. Ninguém sabe o que havia causado a soltura, embora a principal suspeita fosse a comida muito temperada do jantar da noite anterior. O certo é que, ao longo daquela jornada rumo ao Grito do Ipiranga, o príncipe regente teve que se aliviar oito vezes durante o caminho. Reza a lenda que, ao parar em um rancho em Cubatão, uma jovem Maria do Couto teria preparado um chá de folhas de goiabeira para aliviar a dor de barriga de D. Pedro”, segue o texto, encerrando com “a diarreia foi bem real” (hahahahaha!).
E, convenhamos, “soltura” é muito bom!
Cagão!
Nos libertou junto com um monte de excrementos.
E aí vem o dinheiro. Não, leitor, eu adoraria, mas não tenho grana pra te dar. É o verbete “dinheiro”. Pois o cagão ilustrou com sua imagem as notas de um conto de réis (1923/26), 200 cruzeiros (1943/73) e 5 cruzeiros (1970/84). Nesse verbete, o Peninha nos conta que “Dom João VI (o pai do cagão viciado em sexo) havia levado para Portugal todos os recursos do Banco do Brasil. Após a Independência, a situação piorou porque, além de ter pago 18 milhões de cruzados, o Brasil precisou assumir a dívida de Portugal com a Inglaterra”. Bah! Que merda!
Mas aí vem o verbete “Dívida”, que nos remete a 200 anos atrás.
“É algo que você deve para alguém. Ao tornar-se independente, o Brasil achava que não devia nada para a Corte portuguesa, já que os portugueses tinham levado bastante ouro, diamante, pau-brasil e açúcar daqui. Acontece que os portugueses diziam que todas as construções e benesses do Brasil — cidades, igrejas e palácios; língua, religião e instituições — tinham sido trazidas por eles. E tudo isso tinha preço e era muito mais alto do que ouro, diamante, pau-brasil e açúcar. Assim, as duas nações ficaram brigando por um bom tempo. O argumento dos brasileiros era que os Estados Unidos e a Holanda tinham se separado respectivamente da Inglaterra e da Espanha sem pagar absolutamente nada. A confusão foi até 1825, quando, para ter sua independência reconhecida pela metrópole, o Brasil assumiu a dívida que Portugal havia contraído com a Inglaterra. Ou seja, o Brasil independente já nasceu como uma nação endividada.”
Há 200 anos.
E vejam a bola de neve que se formou desde então, tipo realismo fantástico. Conta o livro do Peninha, no verbete “Empréstimo”: “O Brasil pegou muito dinheiro emprestado da Inglaterra para pagar o que Portugal devia para… a Inglaterra. Depois pegou mais para pagar o que ele próprio passou a dever para… a Inglaterra”. (…) “Por volta de 1826, o governo já havia gasto tudo e precisou recorrer à emissão de moedas de cobre com valor quatro vezes maior do que o verdadeiro, gerando assim uma coisa muito prejudicial ao país e aos seus habitantes: a inflação.”
…
Você sabe que uma das obsessões deste colunista é a Argentina. Dá pra recorrer à sabedoria do tango para dizer que “a história é o passado que volta”. E a dívida sempre é tema atual.
E lá a história da dívida se iniciou num 19 de agosto de 1822, quando o então ministro Rivadavia (o mesmo do “sillón” onde se acomoda hoje a bunda do Milei), depois aquele que é considerado o primeiro presidente das províncias unidas, propôs que se contraísse um empréstimo externo, por 3 ou 4 milhões de pesos. Os objetivos eram fundar um porto em Buenos Aires (o gentílico “portenho”, dos moradores da hoje capital federal, nasce com essa dívida), três cidades e saneamento básico.
E foi uma bola de neve como aqui (pra vocês terem uma ideia, entre o golpe militar argentino de 24/3/1976 e a volta da democracia, com a posse de Raúl Alfonsín em 10/12/1983, a dívida externa argentina saltou de US$ 7 bilhões para inacreditáveis quase US$ 50 bilhões – a ditadura argentina, além de ter assassinado 30 mil pessoas, ainda fez isso).
Mas voltando dois séculos atrás, ao menos no calendário, a Grã-Bretanha só reconheceu a independência argentina quando a dívida foi contraída. E esses fatos se comunicam muito.
A Espanha, naquele momento, era coadjuvante. Napoleão já tinha soltado o osso, mas os “criollos” foram espertos em 1810. Fizeram a revolução de maio, juraram falso amor à Coroa Espanhola desativada e, quando esta voltou com a reentronização de Fernando VII, veio o 9 de julho de 1816, a data que finaliza o processo de independência.
Como seria bom pro Brasil ter Belgranos e San Martíns.
Esses não eram cagões.
Enfim, esse é outro papo.
…
Eduardo Galeano dizia que os nossos países se tornaram independentes para serem dependentes.
Nem sempre concordo com o quase unânime Galeano.
Neste caso, concordo 100%.
…
Mas, enfim, eu e minhas obsessões.
Acima, abordei duas. A Argentina e o 15 de setembro.
Vamos a outra, e agora é muito séria: na semana passada, eu já tinha enviado ao editor e amigo Luiz Fernando Moraes um texto sobre a possível convivência fraterna entre adversários, citando a minha experiência inesquecível com o Paulo Brossard quando faleceu o Leonel Brizola. Como entrego a minha coluna no máximo quinta-feira pra publicação no primeiro minuto da sexta, não mudei o seu conteúdo. Motivos eu teria. E poderosos! Aliás, não mudei porque já tinha entregue a coluna, era véspera da publicação e eu estava completamente desanimado, sem energia. Na quinta passada, os terroristas obscurantistas apoiados por falsos intelectuais e humanistas entregaram a Israel os corpinhos do Ariel e do Kfir Bibas. Nos dias seguintes, foi um festival de crueldades inacreditável. Esta coluna sobre a dívida tem um tom leve apesar do assunto sério, porque este autor precisa de diversão e arte. Não está fácil a selva global de ignorâncias terraplanistas de um lado e “antissionismos” (o nome envernizado do antissemitismo repaginado) de outro.
Que a vida seja leve. E sem dívidas!
Shabat shalom!
Todos os textos de Léo Gerchmann estão AQUI.
Foto da Capa: Dom Pedro e Dona Leopoldina na pintura de Arnaud Julien Pallière.