Tem palavras que viram moda e depois desaparecem, consumidas pelo excesso de uso e pela repugnância que isso provoca. Tenho especial aversão pelo atualíssimo uso disseminado e às vezes equivocado de “resiliência”. Banalizam tanto essa expressão, que farão ela deixar de ser linda (porque ela é linda quando usada adequadamente), no seu sentido de a pessoa cair e ter forças para se levantar retornando ao estado original. Já estou entrando nessa fase de asco. Quando vejo artigos de especialistas que querem falar bonito pulverizando o texto com essa palavra em vez de usar “tenacidade” ou “perseverança”, sério, já me bate aquela náusea.
Mas quero falar de uma palavra cujo contexto forçará a um retorno triunfal. É uma expressão usada muito na época da minha adolescência, lá pelos anos 1980: “bitolado”. A gente usava pros caretas e burros, também para os alienados (outra palavra que os fatos ainda ressuscitarão). Confesso que careta eu ainda uso – e muito – pra me dirigir a abostados.
Darei uma sequência de três motivos que me levam à conclusão de que estamos na iminência de produzir essa geração de burros e bitolados. Até me dá pena, porque tenho uma filha de 16 anos e um filho de 21, e eles são tudo o que a gente queria ser, mas não conseguia. São lindos, abertos, sem preconceitos e humanistas, e conseguem pôr esses valores em prática (nós não conseguíamos). Só que vivem na sua bolha. E isso também me chama a atenção. É razoável supor que aquilo que chamamos de “bolha” redunde em uma elite intelectual. Alguns jovens que veem os pais repetirem os mais inacreditáveis disparates terraplanistas comerão poeira.
Eis os três contextos que me preocupam (o terceiro é óbvio):
- A decadência do hábito de ler jornais, e aqui não me refiro apenas ao jornal impresso, mas à própria versão online. Pode chamar de site, também. Pouco importa. O que me incomoda é que a lógica do jornal é a de uma capa com manchete e chamadas de capa, com assuntos variados espalhados por dezenas de páginas numa ordenação jornalística em geral criteriosa. Veja bem: a própria definição de “notícia” é algo necessariamente inusitado, que surpreende. Quando o cara pegava o jornal no vestíbulo da casa e olhava a capa, volta e meia dizia “opa!” e ia correndo comentar como os amigos, “tu viu?! tu viu?!”. Com o atual hábito de o jovem procurar o assunto que lhe interessa e só se informar sobre ele, a palavra “bitolado” (“que tem ideias, opiniões ou conhecimentos estreitos, rígidos, limitados, ultrapassados; quadrado, careta”) ganhará sua versão mais literal. E os veículos de comunicação ajudarão nesse processo, em vez de exercer seu papel (isso não é trocadilho proposital) de combatê-lo. Com a ânsia do lucro imediato, tendem a se render às redes sociais, usando o número de seguidores do “influencer” como uma espécie de currículo, por mais que o tal cara seja vazio de ideias e, muitas vezes, desonesto e inescrupuloso.
- A reforma que se tenta fazer no ensino médio. Que perigo! Até pode haver uma ponta de sentido nessas mudanças todas, mas estou certo de que estamos diante de um equívoco muito básico: o direcionamento. Tchê, a vida toda eu soube que detestava matemática e química e amava as humanas. Ainda assim, eu tinha consciência de que alguns conceitos básicos de matemática e química são necessários para o desenvolvimento do intelecto. Por mais que eu tenha me esquecido do uso de determinada disciplina, aqueles ensinamentos foram introjetados em algum lugar do meu cérebro. Matemática, por exemplo, é lógica. Ok, que você não seja vocacionado para ela. Mas será uma ferramenta importante para lá adiante, mesmo que adormecida, seja usado na forma de raciocínio. Isso, pra mim, é como 2 + 2 = 4! Viu?! E o ensino de História, então? Meu Deus! TODOS precisam saber História! Assim como todos precisam ter o domínio do idioma local. Talvez uma adaptação que estabeleça a leve tendência de preferência no estudo seja salutar, mas, gente, alguns raciocínios são básicos, e para isso serve a escola. Depois cada qual segue o seu caminho na vida.
- Buenas, agora vamos ao mais evidentes dos pontos. Pobres as criaturas que ouvem em casa que a Terra é plana, a vacina não presta, o nazismo é de esquerda, a orientação sexual tem “cura” (sic) e outros disparates. Há uma tendência de atrofia intelectual desses inocentes. E aí entra a minha convicção de que se desenhará uma elite intelectual, a que não foi contaminada pelo vírus da ignorância. E volto aqui à responsabilidade da grande mídia, assunto complexo, que mereceria um texto só para ele. Vejo o jornalismo esperneando para fazer aquilo que é da sua natureza: buscar a verdade. Que luta! Já vi reportagem com mais de uma página em grande jornal explicando por que é inquestionável que a Terra é redonda. Por Copérnico! Que horror! Mas infelizmente a pauta se impunha. Só que a fatia mais intelectualizada da população precisa refletir sobre seus próprios atos. A demonização da “grande mídia” por supostos progressistas virou um bumerangue pronto a se esborrachar na nossa testa. Sei o quão vazia era determinada crítica. Eu estava lá dentro. Dava vontade de chamar os caras pra ver nossas sinceras reuniões de pauta com seus critérios jornalísticos. E o que resulta dessa demonização? Assinantes e anunciantes são quem dá saúde financeira a um jornal que se quer independente. E pensem bem: lá atrás, quando vocês “cancelaram” um veículo, nas mãos de quem o deixaram?
Creio que são reflexões ainda em tempo de serem feitas.
Os Engenheiros diziam: “Eu posso ser um beatle, um beatnik ou um bitolado”.
Sejamos justos aos beatles e aos beatniks nessa infinita Highway.
…
Shabat shalom!
Foto da Capa: Roman Kraft / Unsplash