Em novembro de 1977, o ditador argentino Emilio Massera disse esta frase: “A crise atual da humanidade se deve a três homens: até o fim do século 19, Marx publicou três tomos de ‘O Capital’ e pôs em dúvida, com isso, a intangibilidade da propriedade privada. A princípios do século 20, é atacada a sagrada esfera íntima do ser humano por Freud em seu livro ‘A interpretação dos sonhos’. E, como se fosse pouco, pra problematizar os valores positivos da sociedade, Einstein, em 1905, torna conhecida a Teoria da Relatividade, onde põe em crise a estrutura estática e morta da matéria.”
Se você acha que Jorge Rafael Videla, o general-presidente de então, era terrível (e ele era), o almirante Massera era ainda pior. Os dois, com Orlando Agosti (pela Aeronáutica), formavam a reacionária primeira junta militar argentina depois do golpe de 24 de março de 1976 (fez 49 anos na segunda-feira), que estabeleceu uma ditadura violentíssima até 10 de dezembro de 1983, com a posse de Raúl Alfonsín.
Para você ter uma ideia, as forças armadas argentinas, desde o surgimento de Perón com o golpe de 1943, sua eleição em 1946 e sua destituição em 1955, eram divididas entre os “bonzinhos” (muitas aspas aí) azuis e os malvados colorados. Os azuis eram contra o peronismo, mas toleravam certa convivência com essa ideologia social-democrática ou populista (chame como quiser); os colorados eram radicais na ideia de erradicação. E Massera era um fervoroso colorado (por favor, isso não é uma zoação futebolística).
Mas perceba: o que Marx, Freud e Einstein têm em comum? Dou uma passagem pra Europa dos anos 1930 a quem descobrir. Não, melhor não.
Na mesma Argentina, em 1919, houve a Semana Trágica. Eram os efeitos da vinda dos conscientes imigrantes socialistas e anarquistas logo após a Primeira Guerra Mundial, em meio à crise. A revolução russa de 1917 era recente. Os judeus, muitos deles anarquistas e socialistas, não por acaso, eram chamados de “russos”. Sacou a maldade? E, em meio à repressão, ocorreu um grande e inédito pogrom no bairro portenho Balvanera (Once), tendo como alvo a população judaica.
Para não sairmos da Argentina, podemos vir para anos recentes e lembrar os atentados terroristas contra a Embaixada de Israel e a Amia, em 1992 e 1994, com um total de 114 mortos.
Acho natural que na Argentina, onde Adolf Eichmann viveu entre 1950 e 1961 (três governos: peronista do próprio Perón, militar de Aramburu e desenvolvimentista do radical Frondizi), o antissemitismo seja mais saliente. Foi lá que chegaram as maiores levas de judeus fugindo das perseguições, com a colônia de Moises Ville, em Santa Fe, já em 1889.
Logo, há certa proporção nisso. As guerras e perseguições vieram junto.
Mas, ora, no Brasil também tivemos a fake news da “Operação Cohen”, que deu um falso motivo para o golpe que estabeleceu o fascismo do Estado Novo getulista em 1937. “Cohen” é um nome judaico que, em termos identitários, vale como uma circuncisão.
Essa relação de judeus com progressismo, civilidade e universalismo se dá em todas as áreas. E a esquerda mundial sempre gritou em uníssono pela necessidade de o povo judeu, com sua cultura, suas leituras, sua ética e seu Deus incorpóreo, ser defendido da brutalidade antissemita. Sempre viu essa perseguição, esse desamparo.
É de um simbolismo muito eloquente que o pai do escritor israelense Amos Oz, quando vivia em Vilna (capital da Lituânia), via as paredes, nas ruas, com os dizeres “Judeus, vão pra Palestina”. Então ele foi, Amos nasceu já em Jerusalém e um dia seu pai, idoso, resolveu voltar pra cidade onde ele próprio veio ao mundo. Voltando, viu, pasmo, paredes pichadas com a frase “Judeus, saiam da Palestina”.
Perceberam o impasse?!
Essa história está em “De amor e trevas”, e é incrível.
Sempre procuro lembrar que “Palestina” era uma região, o nome se refere aos filisteus, e a mesma região já teve o nome de Judeia.
Também gosto de lembrar as dezenas de sobreviventes do Holocausto que me disseram em longas entrevistas que fiz quando vivi na Argentina (e outros, como a minha avó, disseram em particular): que alívio hoje termos Israel.
Também na Argentina, a mãe da Praça de Maio, Sara Rus, sobrevivente de Auschwitz, viveu sua segunda tragédia. Viu o filho, o brilhante e jovem cientista Daniel, ser morto pela ditadura nos anos 1970. Dona Sara nunca mais viu a família, executada pelo nazismo, e, anos depois, enfrentou o desespero de perder o próprio filho pelas mãos de fascistas argentinos.
A esquerda sabe disso e, sabendo, precisa urgentemente repensar sua visão sobre o sionismo, nada mais nada menos que o justo movimento de autodeterminação do povo judeu na sua terra ancestral diante de uma diáspora crudelíssima. Citei alguns casos próximos de nós aí em cima. Mas poderia voltar a falar sobre a Inquisição, sobre os pogroms na Europa Oriental, sobre o Holocausto, sobre o Caso Dreyfus na França. É muita perseguição, é muito desamparo. A autodeterminação judaica na sua pequena terra ancestral é de uma justiça acachapante, ao lado dos vizinhos árabes, os árabes palestinos ou os que já têm 22 Estados para preservar seus traços culturais e não serem discriminados. E isso é sionismo. Só isso.
Diante do exposto acima, chego a Vladimir Herzog. O judeu Vlado nasceu na Croácia em 27 de junho de 1937, veio para o Brasil, tornou-se jornalista, militou ponderadamente na esquerda e, em 25 de outubro de 1975, foi executado pelo regime militar, que tentou porcamente disfarçar um suicídio. O rabino Henry Sobel se tornou um corajoso herói ao enterrar Vlado como alguém que morreu por causas externas, e não por suicídio (há diferenças de procedimento na tradição judaica). Para muitos, foi a primeira manifestação política contra a ditadura brasileira.
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E agora eu chego na minha universidade, a UFRGS, e na minha faculdade, a Fabico (Jornalismo da UFRGS). Quero fazer um pedido à amada casa onde me formei na profissão que tanto adoro. Ocorre que a Associação Brasileira de Imprensa instituiu 2025 o Ano Vladimir Herzog como forma de recordar seu assassinato e sua trajetória. E, em Porto Alegre, uma mobilização de alunos, ex-alunos, professores e ex-professores da Fabico resultará no evento “Vladimir Herzog 50 anos – Fabico presente!” Terá até o descerramento de uma placa em homenagem ao Vlado e o debate sobre a trajetória e a contribuição desse grande nome judaico que aportou tanto valor ao jornalismo e à democracia. O evento ocorrerá no Auditório 1 da Fabico, dia 8 de abril, das 9 às 11h30min. Ivo Herzog, filho de Vlado e Clarice Herzog, fundador do Instituto Vladimir Herzog, estará lá.
Que fique claro para sempre: este colunista jamais pediu e jamais pediria que fosse interditado o debate sobre a intensidade da violência do governo de Israel contra o pogrom de 7 de outubro de 2023. A crítica é apropriada e justa, o debate em geral é sadio. Só, por favor, não repitam tolices sobre o sionismo, não neguem o direito de Israel existir (nenhum problema em defender o Estado Palestino ao seu lado, em mútuo reconhecimento e segurança) e, sobretudo, nesse caso, lembrem realmente quem é Vlado, sua origem e o primeiro drama que o fez chegar ao Brasil ainda criança.
Façamos justiça à dor histórica do seu grupo étnico e a ele próprio.
E tenhamos um ótimo evento.
Esse pedido está sendo feito por um jornalista judeu que ama demais a sua profissão e a faculdade de onde saiu. Também não custa lembrar que a minha turma na Fabico, em 1986, se formou pondo como paraninfo o querido Geraldo Canali, que tinha sido expulso da instituição pela ditadura. Depois da nossa ação, Canali foi readmitido e se estabeleceu a Justiça.
Sejamos justos! Sempre!
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Vlado:
Nasceu em Osijek (então parte da Iugoslávia, atualmente Croácia) em 27 de junho de 1937. Morou em Banja Luka, onde seus pais tinham um comércio, até agosto de 1941, quando o exército nazista ocupou a cidade para perseguir judeus. A família de Herzog, judia, decidiu fugir do cerco das tropas de Hitler e foi para a Itália, onde, até 1944, a família Herzog morou em campos de refugiados de três cidades italianas: Fonzaso, Fermo e Magliano di Tenna. Depois, mudaram-se para um campo de refugiados em Bari, onde permaneceram por dois anos.
No fim de 1946, com a Segunda Guerra finalizada, emigraram para o Brasil, chegando ao Rio de Janeiro em 24 de dezembro. Ele tinha nove anos. Logo depois, foram para São Paulo. Estudou no Colégio Estadual de São Paulo, participou de grupos de teatro amadores e ingressou na Faculdade de Filosofia na Universidade de São Paulo – onde conheceu Clarice Ribeiro Chaves, sua futura esposa.
Sua carreira como jornalista começou em 1959, como repórter em O Estado de S. Paulo. Ali, cobriu a inauguração de Brasília, a visita de Jean-Paul Sartre ao Brasil e a posse de Jânio Quadros. Em 1962, foi à Argentina cobrir o Festival de Mar del Plata. Entusiasmado, na volta, iniciou a carreira no jornalismo cultural, em especial na crítica de cinema.
Apaixonado pelo cinema, Vlado também se dedicou à produção cinematográfica, produzindo o documentário em curta-metragem Marimbás e colaborando em outras duas obras – Subterrâneos do futebol (Maurice Capovilla) e Viramundo (Geraldo Sarno).
Como jornalista e comunicador, passou pela TV Excelsior, Rádio BBC de Londres – o que o levou a morar na Europa e revisitar as cidades de seu passado –, Revista Visão, agência de publicidade J. Walter Thompson, TV Universitária da UFPE, jornal Opinião e foi professor de jornalismo da FAAP e da ECA-USP. Pela TV Cultura, teve duas passagens: em 1973 e em 1975, quando assumiu a direção do jornalismo em setembro de 1975.
Em 24 de outubro, um dia antes da sua morte, militares haviam procurado Vlado na TV Cultura. O próprio jornalista combinou que estaria disponível na manhã do dia 25 para o interrogatório. Vlado compareceu espontaneamente à sede do (DOI-Codi/SP), na Vila Mariana, para depor. Ali, foi assassinado. Além da tortura e violência, forjaram uma falsa versão de suicídio, que não se sustentou e levou uma multidão de mais de 8 mil pessoas à Catedral da Sé e todo o entorno para uma missa de 7º dia do jornalista. O ato ecumênico de desagravo que se viu ali, com D. Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o reverendo Jaime Nelson Wright, foi um marco na luta pela democracia e o início da derrocada do regime ditatorial.
Só em 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, bem como pela ausência de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vlado.
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Shabat shalom!
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Foto da Capa: Arquivo Instituto Vladimir Herzog