Dez anos atrás, fiz uma das entrevistas mais marcantes da minha vida, trabalhando em Zero Hora. Após meses de e-mails trocados com sua assessoria, enfim consegui marcar uma charla com o então presidente uruguaio Pepe Mujica. Fui a Montevidéu e num determinado horário de uma manhã ensolarada, cheguei ao palácio presidencial, na Plaza Independencia. Pra minha surpresa, em vez de ser levado ao despacho presidencial, embarquei num carro e segui numa senda de chão batido, até que… opa!… lá estava eu na chácara do Pepe, com o próprio me esperando na porteira e a cadelinha Manuela (que viveu longos 23 anos, depois eu soube) se aprochegando, com suas três patas e a inteligência de saber que ali estava uma pessoa que adora cães. A bichinha passou a entrevista toda ao meu lado.
Mas por que conto essa história? Porque tirei muitos ensinamentos naquela entrevista. Pepe, não tenho a menor dúvida, é o grande personagem mundial. Aquele senhor é amor em estado puro, conheceu o inferno e dele tirou lições valiosas. Como todo ser humano honesto, sabe que cometeu erros e não os renega. Mas, de cabeça, farei um decálogo, com 10 raciocínios do Pepe, que tentarei me lembrar de cabeça (acho autêntico isso). Alguns talvez o surpreendam, mas quero enfatizar que o primeiro e o décimo guardam um paradoxo com o qual ando precisando muito conviver. Enfim, eu os exponho e depois sigo.
- O homem é um ser gregário, social por natureza e, por isso, político. Ele costuma citar Aristóteles para dizer que o homem é um ser político. Só que vai além. Diz que o homem é um ser social, que precisa conviver com o outro e que a solidariedade (entre os contemporâneos e transgeracional) é a própria civilização.
- Uau! Se você é desses que andam curtindo o estupro das instituições e a violação das artes, já deve estar pensando. “Baita comuna esse veio!” Pois, pra sua surpresa, Pepe diz que a burocracia é ainda pior que a burguesia e que jamais o homem deve viver de forma coletivizada. A política deve servir para atenuar as desigualdades.
- Pepe, evidentemente, rejeita a perversidade capitalista de criar necessidades e provocar o que ele classifica como uma sociedade ansiosa, que acredita na busca da felicidade pelo consumismo. Diz ele que a maior riqueza de uma pessoa é a valorização das pequenas coisas e, muito em especial, do que se tem.
- O então mandatário uruguaio contesta a classificação de “presidente pobre”, que muitos insistem em lhe dar. Sustenta que nada pode ser mais rico do que ser como quer e fazer o que deseja. Que nunca quis morar longe da sua chácara porque é ali, em meio ao amor e às plantas, está a sua vida. “Pobre é quem precisa muito.”
- Quando eu estive com ele, era essencial perguntar sobre a liberação da maconha, e ele se mostrou contra o vício em drogas. Um dos argumentos que usou para a liberação é que, ao se apropriar do processo econômico, o Estado afasta o traficante e garante o produto puro, tanto para uso recreativo quanto para o medicinal.
- Ao falar sobre seu simpático fusca azul, mesmo sem saber que sou judeu, ele citou Israel como o lugar onde as pessoas vão trabalhar de bicicleta. Nem precisei falar sobre as minhas raízes. O sorriso que abri certamente mostrou que fiquei muito satisfeito ao ouvir aquele ser humano iluminado elogiar meu lar ancestral.
- Ao falar que interdependemos socialmente, ele pediu que preservemos a sociedade. Pontuou a diferença entre a paixão e o fanatismo, porque o fanatismo alimenta o ódio, e o ódio é cego como o amor. Só que aí ele pontua a diferença essencial: o amor, cria, constrói, e o ódio destrói a quem odeia e a quem é odiado.
- Ao falar do que sofreu como prisioneiro da ditadura militar uruguaia (esteve 14 anos preso), ele enfatizou a necessidade de Justiça e de não esquecer, evidentemente. Mas ao mesmo tempo disse que foi necessário pra ele se dar conta de que os olhos foram colocados no rosto das pessoas (na frente) porque é importante seguir adiante.
- Pepe fala no uso do tempo e exemplifica: o cara diz que trabalha muito porque precisa suprir as necessidades dos filhos, a quem nada deve faltar. Mas aí ele emenda, de forma genial: o problema é que pode faltar aos filhos a própria presença do pai. Eu me lembro que ouvi aquilo e arregalei os olhos. É constrangedoramente óbvio.
- O décimo item é o que, na nossa atormentada atualidade, me parece se chocar com o primeiro desta lista apressada. Pois é. Mujica diz, ao falar sobre ecologia (mas podemos ampliar esse raciocínio), que o homem primitivo depredava, mas era ignorante. O atual depreda sabendo dos efeitos disso. Logo, é muito pior.
Eu quis me ater ao decálogo, por pura simetria. Mas poderia contar que Pepe vê “liberdade” como expressão muito mal-usada, que deve ser a decisão de cada um ser como se sente melhor (sem ferir o outro, evidentemente). Nunca vou me esquecer: “Tu és livre quando gastas teu tempo naquilo que te motiva.” O Pepe é foda! Também é lindo vê-lo falar sobre o amor que sente pela vida, que “es hermosa”. Que aconselha os jovens a investir no conhecimento, no conteúdo. Que a grande sabedoria está em ter a habilidade de levantar-se depois de cada inevitável queda. Que a máquina deve estar a serviço do homem, e não o homem a serviço da máquina. Que uma pessoa com poucos valores diante do computador é como um gorila com uma metralhadora (“Não é culpa da tecnologia, mas a tecnologia avançou muito mais que nossos valores”). Enfim, ensinamentos a dar com pau. Foi engraçado eu chegar à chácara e tirar a gravata, porque meu entrevistado, o presidente do país onde eu estava, me atendeu de alpargatas e camisa em mangas. E foi mais engraçado ainda eu sair tonto, de tanto que aprendi.
Mas, buenas, chegamos ao grão. A absurda agressão às instituições promovida por extremistas de direita no domingo passado (bolsonaristas são todos extremistas de direita. Logo, não me venham como “bolsonaristas extremistas”) me faz pensar. Esses imbecis de hoje são muito piores do que foram os apoiadores da ditadura, nos anos 1960 e 1970. Por quê? Ora, porque, os 1960 e 1970 já passaram e foram desnudados. Hoje não temos a nosso favor o álibi da ignorância, que poderíamos ter 50 anos atrás. O canalha que hoje defende o indefensável sabe muito bem o que defende. O Ustra é fato, a tortura é com provada, o egoísmo está em cada agressão, assim como o machismo, a homofobia e o racismo. As pessoas que invadiram os Três Poderes sabem o que fazem. E são pessoas más.
E agora vem outro ponto: o meu sofrimento, que provavelmente seja igual ao de vocês, que gastam tempo lendo este comuna admirador do velho depravado citado acima. É muito sofrimento saber que algumas pessoas das nossas relações ultrapassaram qualquer limite. Sou uma pessoa ponderada. Tal qual o mestre Mujica, sou social-democrata, sou de esquerda, mas reconheço os erros do coletivismo e acredito na individualidade (que, num aparente paradoxo, só a justiça na distribuição de oportunidades pode promover). Mesmo assim, respeito profundamente as diferenças. Respeito quem é liberal na economia, por acreditar que o crescimento do bolo servirá a todos. Discordo profundamente, mas respeito. Só não respeito o fascismo. Em 2018, fiz vista grossa pra muitos eleitores do sujeito ora escondido em Miami. Ok, são contra o petê. Em 2022, foi difícil, mas, puxa, eles continuam sendo contra o petê e engolem o grosseiro ignorante e desclassificado (o Bozo) em nome dessa urticária meio estranha. Mas agora não, pessoal. Todos os limites foram ultrapassados. A defesa do inadmissível é questão de caráter e motivo de rompimento.
Chega! A tolerância, nessas condições, virou sinônimo de tolice.
Somos seres sociais, como diz o Pepe. Mas algumas convivências são impossíveis.
…
Eu tinha a ideia de escrever uma coluna só sobre o uso das palavras. Por temperamento e vocação, procuro cuidar o que falo. Na semana passada, arranhei esse assunto aqui. Mas quero desenvolvê-lo. As palavras são poderosas, pro bem e pro mal. Bendita hora em que temos como ministro dos Direitos Humanos o grande Silvio Almeida, cujo trabalho me foi apresentado anos atrás pelo meu queridíssimo amigo Roger Machado (como eu e o Roger temos afinidades, muito além da identificação no futebol!). A criação dessa expressão simples, “racismo estrutural”, explica muitas coisas (leia a ótima coluna do meu também amigo Marcos Bliacheris, semana passada aqui na SLER). É como o uso da palavra “bullying”. Nunca mais, depois de ela se tornar conhecida, a terrível perversidade das crianças, passou a ser tolerada por todos como simples traquinagem. Diante disso, peço que parem de chamar “extremismo” de “radicalismo” (ser radical muitas vezes é lindo, podes crer!) e, sobretudo, que parem de tratar o bolsonarismo como uma ideologia aceitável, em paralelos com outras preferências como se não fosse ela, em si, a própria destruição da civilização e da vida.
O bolsonarismo é perverso e precisa ser erradicado!
Está claro?!
Shabat shalom!