Este apelo não é corporativista. É em nome da sociedade.
Por favor! Voltem a tornar a formação universitária do jornalista obrigatória.
Quem faz a faculdade de Jornalismo, como eu fiz na minha amada Fabico-UFRGS (formado em 1986), sabe da importância do nosso diploma, pra nós e pro consumidor de informação.
Questões técnicas e éticas já protegiam a sociedade antes e asseguravam qualidade, ao menos em tese (claro, sempre tem os maus profissionais, como em todas as áreas). Agora, com a leviandade e a desonestidade disseminada das fake news (uma expressão extremamente contraditória, porque, se é “fake”, necessariamente não é “news”. Mas, enfim…), cresceu essa importância.
Somos essenciais! Nossa profissão é essencial! O médico não pode ser confundido com o curandeiro; o advogado não pode ser confundido com o rábula. O charlatanismo é nocivo.
E assim é conosco!
Estão surgindo PECs e campanhas pelo retorno da obrigatoriedade do diploma pro exercício da profissão de jornalista. Isso não impede que pessoas de outras áreas que tenham o dom da escrita e da comunicação em geral também escrevam artigos e crônicas e façam análises, como sempre fizeram. Falamos de Jornalismo! Minha aderência a essa campanha, como jornalista e cidadão, é intensa. Precisamos levar adiante esse assunto.
Repito: se o jornalista já era essencial por informar, agora se tornou ainda mais essencial por, além de informar, combater a desinformação, uma praga disseminada.
Esse meu apelo veio de um episódio que vivi durante a semana. Em um desses grupos de WhatsApp, eu, com exatos 37 anos de profissão e militância intensa nas redações da vida, com uma reflexão diária sobre os rumos do meu ofício, fui desrespeitado e humilhado ao discutir esse assunto em pé de igualdade com pessoas totalmente alheias à minha atividade.
Eu trazia fatos, e os caras contestavam, como se fossem entendidos no assunto.
E o pior é que o “arrogante” era eu, quando na verdade o ignorante no assunto, ao se meter na seara que não é a sua, comete, ele sim, o papel da prepotência e da arrogância.
Me senti desrespeitado. Me senti humilhado.
Com passagem por grandes redações (em especial Zero Hora e Folha de S. Paulo), experiência de correspondente internacional, grandes coberturas mundo afora, nove livros-reportagem, eu tinha que ser paciente com as “opiniões” desferidas por quem tem zero conhecimento, tanto da atividade quanto dos profissionais com os quais convivo há décadas.
Era como eu e outros numa mesa de bar. Eu com informações, e os caras com ilações.
É humilhante!
Aí eu comentei com o meu filho, acadêmico de História na UFRGS.
E ele matou a pau:
“Pai, se alguns desses mesmos caras muitas vezes não são médicos e defendem o uso da cloroquina pra combater a covid-19 em detrimento das informações científicas, por que tu te surpreende ao vê-los se sentirem no direito de palpitarem sobre o jornalismo?”
Faz muito sentido!
Mas foi e é desgastante pra mim.
Eu costumo comentar com as pessoas. Tenho uma vida como jornalista.
Falando em filhos, sou extremamente previsível. Quando criança, me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, e eu respondia: pai. Sou, efetivamente, pai de dois filhos que me enchem de orgulho e sou capaz de tudo por eles. Quando adolescente, minha resposta pra mesma pergunta era: jornalista. Ou seja, o jornalismo está na minha vida há mais de 40 anos.
Respeitem minha vocação e meu ofício!!!
…
Mas esse desrespeito não vem só de fora.
Vejam o que virou, muito em especial, o jornalismo esportivo.
Foi revertida completamente a ordem: se antes o jornalista era “formador de opinião”, hoje é formado pela opinião. Os “influencers” ganham protagonismo e emporcalham o ambiente.
O sujeito que põe um site na salinha da sua casa e escreve qualquer coisa, porque qualquer coisa é aceita no universo impune da internet (até mentiras), não tem nem a vocação, nem a formação, nem o compromisso ético com a credibilidade. É um picareta, um charlatão.
Mas há uma armadilha, em especial no jornalismo esportivo.
Sigam o fio:
- O cara resolve ser um histriônico divulgador de sensacionalismos, muitas vezes mentirosos, mas encontra eco entre os torcedores médios de futebol.
- Encontrando eco entre os torcedores médios de futebol, esse sujeito consegue milhares de seguidores que querem ouvir sua narrativa irresponsável.
- O número de seguidores acaba substituindo o conteúdo, a seriedade e a qualidade. Ou seja, o animador de auditório substitui os jornalistas “mimizentos”.
- A necessidade do lucro imediato dá o tom do competitivo mundo em que vivemos, e o tal número de seguidores faz os olhos dos empresários brilharem.
- Por que o número de seguidores faz os olhos das empresas brilharem? Porque muitos seguidores podem se transformar em muita audiência e em muito lucro.
- Não se esqueça o sistema em que vivemos. A ganância é a maior de todas as conselheiras, e o “entretenimento” põe o jornalismo na sarjeta.
- Trata-se de uma armadilha, porque sabemos que o jornalismo precisa se diferenciar de toda essa irresponsabilidade, até pra mostrar que é o trigo, e não o joio.
- Mas o tal lucro imediato amparado na audiência desqualificada é o grande conselheiro capitalista. Resultado: os veículos adotam o joio em detrimento do trigo.
- O jornalismo é o trigo que produz o pão. É o que permite ao cidadão estar informado. É o que permite ao cidadão ver a maldade da mentira. Mas o joio dá lucro.
- Ou seja, estamos fodidos!
…
Veja na minha coluna da semana passada o perigo a que pode chegar a ganância dos veículos de comunicação, por pavimentar o caminho de figuras como o argentino Jaiver Milei.
…
Entra outra necessidade aqui. Além da garantia representada pela formação universitária, é urgente a regulação das redes sociais e da internet. As pessoas precisam entender que sua leviandade pode ser virtual, mas as pessoas atingidas são reais. Logo, precisam ser responsabilizadas pelo que dizem e escrevem. Esse absurdo precisa ter um fim.
Eu comparo o trânsito de informações com o trânsito automotivo. Nos dois casos, o emissor da mensagem, seja ela a agressividade motorizada ou a irresponsabilidade dedilhada, sente-se protegido por uma carcaça de metal, representada pelo carro ou pelo computador.
Essa virtualidade precisa ser chamada ao mundo real.
E a forma de isso ocorrer é a punição pesada.
…
Em 2014, quando escrevi meu primeiro livro (“Coligay, Tricolor e de todas as cores”), eu já intuía isso. Sempre fui um cara muito intuitivo, e acho que essa é uma grande qualidade na minha belíssima profissão. Meus livros são jornalismo radical. Nesse livro, em “Somos azuis, pretos e brancos” e em “A Fonte, a incrível história de Salim Nigri”, sem em desrespeitar os rivais, mostro com personagens reais e fatos inequívocos que meu time tem uma lindíssima história de pluralidade, falando em homossexualidade, negritude e judaísmo.
Ganhei muitos admiradores, mas fui alvo de algumas pedradas cruéis e injustas.
Não sou historiador, sou jornalista. E meus livros são importantes peças jornalísticas para subsidiar o historiador que se debruçar academicamente sobre o assunto.
Reportagem = reportar fatos!
Como diz Yuval Harari, nós nos tornamos reféns de nossas próprias narrativas.
Dizer que uma consolidada dicotomia tola não existe tem um custo muito alto.
Meus livros inclusive reconhecem que, por um determinado período e em razão de contextos que não necessariamente têm a ver com a generosidade inocente, os rivais locais do meu clube se abriram, foram mais acolhedores e transformaram isso em um poderoso marketing nos anos 1940. Algum problema nisso? Não! Inclusive eu elogio essa atitude e seu uso.
Explico as motivações desse contexto todo, mas o reconheço como legítimo.
Por isso, me doeu muito, na semana passada, perceber que nenhum meio de comunicação fez a manchete histórica necessária. Uma manchete de evidente apelo jornalístico.
Rigorosamente todas as pesquisas, desde que se tornaram produtos científicos e metodológicos, mostram o Grêmio como clube gaúcho de maior torcida. Invariavelmente, esses números são de 8 milhões, contra 7 milhões do Internacional.
E é o que eu sinto nas ruas.
Mas na semana passada ocorreu algo muito diferente, algo muito saliente, algo de força jornalística inequívoca. O Datafolha, talvez o instituto de maior credibilidade, respaldado pelo maior jornal brasileiro (a Folha de S. Paulo, onde tive a honra de trabalhar por mais de uma década) mostrou o Grêmio como quinta maior torcida do Brasil, com 4%, ao lado de Cruzeiro e Vasco. É o que sempre mostram os levantamentos. Ou seja, nenhuma grande novidade nessa posição. Mas o Internacional, o sedizente “clube do povo”, tem 2% e divide o nono lugar com outros três clubes. Em números brutos, o Grêmio tem 8,12 milhões de torcedores, e o Internacional tem 4,06 milhões de torcedores. É exatamente a metade!
Minha opinião? Acho que há um exagero nesses dados. Pelo que vejo nas ruas, os 8 milhões de gremistas contra 7 milhões de colorados me parecem fidedignos. Mas os números do Datafolha impressionam. Foram apurados por um instituto de pesquisas respeitadíssimo e merecem ser lidos com atenção. Como existe o slogan “clube do povo” e o futebol mexe com a paixão das multidões, seria obrigatória a manchete ou chamada de capa nos sites e jornais: “Grêmio tem o dobro da torcida do Inter, mostra Datafolha”. Mas não vi isso.
E volto, então, ao jornalismo que se deforma pela opinião em vez de formar a opinião.
Não foi chamada de capa porque não interessava.
Não foi chamada de capa porque haveria retaliações.
Não foi chamada de capa porque o que importa são os seguidores ignorantes.
Não foi chamada de capa porque uns vibrariam, mas outros cancelariam.
Não foi chamada de capa porque a isenção anda escassa.
Não foi chamada de capa porque o lucro imobiliza.
O jornalismo não pode brigar com os fatos. Precisa ser seu amante.
Tristes tempos que vivemos, em que o jornalismo nunca foi tão essencial, mas, paradoxalmente, por questões de mercado, dilui-se nas redes.
Tristes tempos.
…
Shabat shalom!