Dois assuntos que me ocupam de forma especialíssima durante toda a minha trajetória profissional: Argentina e minorias. Argentina porque fui correspondente da Folha de S. Paulo lá há 1/4 de século, e eu saí de lá, mas o “lá” nunca saiu de mim. Minorias porque fui criado numa família de judeus que trazem a cultura da perseguição, e a sensibilidade a esse tema é uma imposição atávica e moral. O fato é que, quando se juntam esses dois assuntos, eu deliro.
Em 16 de dezembro último, escrevi AQUI mesmo na SLER um texto que conta como a Argentina se branqueou. Foi no fim da Copa do Mundo. Muitas pessoas começavam a comentar que países europeus como a Alemanha e a própria França (derrotada na final pelos argentinos) tinham jogadores negros, mas a Argentina, país sul-americano que teve a escravidão legalizada até 1853 (abolição 35 anos anterior à nossa), era toda branquela, um assunto interessante.
Nesse texto, expliquei como as guerras de independência, a Guerra do Paraguai, a febre amarela que devastou San Telmo (o principal bairro portenho da época) em 1871 e a ação simplesmente de “branquear” fizeram Buenos Aires deixar de ter uma população em que 30% eram descendentes de africanos. Contei com a entrevista de um antropólogo que pesquisava o assunto.
Mas agora quero falar da literatura fundacional argentina. Dois belíssimos livros dão conta desse imaginário do gauchismo. “Martín Fierro” e “Don Segundo Sombra”. Sobre Martín Fierro, muitas vezes o autor, Jose Hernández, é mal compreendido. Fierro era um gaúcho com sua vida estruturada, esposa, dois filhos, paz e amor. Até que o presidente Sarmiento, na sua sanha de “civilizar” (sic) a Argentina, começou a pegar o pessoal nos bolichos e nas pulerias e mandá-los para a fronteira, com a missão de enfrentar a ameaça dos índios.
Não era para Fierro ir. Mas, como ele se recusara a votar nas eleições recentes, o poderoso juiz de paz o chamou e convocou a defender a pátria, deixando esposa, filhos, paz e amor pra trás. Seriam seis meses remunerados. Foram três anos não remunerados. Nosso herói pirou! Voltou pra casa e achou só a casa. A esposa tomou novo destino e os filhos idem. Devastado, Fierro se tornou gaúcho fora da lei e fez um monte de merda durante dois anos muito loucos.
A maior de todas as merdas foi ter assassinado um homem negro e tê-lo ofendido. Hernández claramente mostra ali como eram esses personagens, racistas, grosseiros e revoltados contra o sistema. No total, foram 10 anos de tropelias. O primeiro livro é de 1872 (fez 150 anos recentemente), e é chamado popularmente de “a ida”. O segundo livro é “a volta”, de 1879. Neste, Fierro, acompanhado do seu amigo Cruz, amadurece como ser humano, aprende muito. Ao reencontrar seus dois filhos, dá dicas maravilhosas de vida aos meninos e enfrenta o irmão do homem negro que matou num acerto de contar pela pajada. Particularmente, acho esse trecho emocionante. Fierro fala sobre a igualdade entre as pessoas e mostra seu arrependimento (sim, é pouco. Mas o livro mostra a evolução do personagem).
De 1926, é Don Segundo Sombra. Dê uma espiada na foto acima. Ali está o homem real Don Segundo Ramírez. Pois bem. Esse homem negro, de inteligência, perícia, alegria de viver, picardia, lealdade, afetividade e retidão admiráveis, inspirou o autor Ricardo Güiraldes a escrever a história do “Sombra”. Don Ramírez era gaúcho reseiro (cuidava das reses) que perambulava pelos Pampas depois de ter enviuvado muito jovem.
Güiraldes o viu e passou a admirá-lo como uma figura de caráter exemplar. E veio a ideia de escrever esse livro fascinante. No livro, o menino, criado pelas tias, que se encanta pela figura de Don Segundo Sombra, tem sede de conhecimento. Aprende muito com o protagonista sobre a arte de viver e conviver. A despedida dos dois, quando o menino descobre quem é seu pai e ganha uma bolada de herança, é comovente. O garoto chora sangue.
O curioso é que a cultura do racismo, tão desumana e tão espraiada, faz alguns apressadinhos assegurarem que Don Segundo levou o apelido de “Sombra” ao vestir o personagem em razão da sua tez escura. Só que não, pessoal! Contenham sua asquerosa tendência preconceituosa e cruel. O “Sombra” de Don Segundo se deve ao fato, conforme o próprio Güiraldes falou a jornais argentinos da época, a ele ser mais que um homem, ser uma “ideia”, um “ideal”.
Perceba, então: a personalidade ideal, de valores sólidos, que a literatura empresta aos argentinos para terem ali uma referência é um homem negro. Só esse fato já serve para mostrar a intensidade da influência africana no país cuja seleção é branquela como a neve da Patagônia. Mesmo que tenha sido branqueada à força, a Argentina tem a negritude na alma.
Curiosidade: em 15 de novembro de 1927, Don Segundo Ramírez encabeçou o cortejo que se deu para acompanhar o corpo de Güiraldes, morto um mês e uma semana antes em Paris, aos 41 anos. Ramírez morreria nove anos depois. E é interessante ver que ele sobreviveu ao homem que o eternizou como figura modelar do caráter elevado que está no horizonte da literatura argentina, como meta de um homem exemplar. Um homem negro!
A África está ali, presente e linda.
Shabat shalom!